Jovens denunciam superlotação e até tortura em unidades de internação

Entrevista com adolescentes em regime de internação no Sistema Socioeducativo, exibida no Programa Fantástico no dia 22/07/2012.

No fundo de uma cela, um jovem compõe o rap da prisão. “Perdi a adolescência e a juventude no sistema, não aguento mais ouvir o barulho de algema”.

Como funciona o sistema criado para reeducar adolescentes em conflito com a lei?

“Isso aqui era pra ser uma recuperação pra pessoa, né? A gente sai pior do que entra”, diz um jovem.

Denúncias de tortura. “Pisa nos pés, bate nos pés. Deixa só de cueca. Bota a gente dentro de um cubículo, passar dois dias”, revelou outro.

Ambientes imundos. Superlotação. “Aqui não é lugar para ser humano não. É lugar pra bicho”, afirma um menino.

Dos 58.764 adolescentes que cumprem medidas socioeducativas no Brasil, 18.107 estão internados em unidades como essas. A maioria absoluta, 62,8 %, cometeu delitos contra o patrimônio: roubos ou furtos. “Eu furtei um litro de uísque”, conta um jovem.

O envolvimento com o tráfico chega a 30%. Entre os delitos contra a pessoa, os assassinatos são 4,1% do total.

“Esses adolescentes estão aqui porque devem estar aqui. O que a sociedade tem que entender é que esse adolescente será devolvido para a sociedade, deve ser reintegrado e socioeducado em muito melhores condições do que entrarem aqui”, diz o promotor de Justiça Júlio Almeida.

A lei diz que o estado deve proteger, recuperar e ressocializar esses jovens.

O Fantástico visitou unidades de internação onde isso deveria acontecer, começando pela Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul. A unidade é a porta de entrada do sistema em Porto Alegre. Se o adolescente comete o seu primeiro ato infracional grave é para lá que ele é levado. A lei diz que ele teria direito a ficar sozinho em um dormitório de nove metros quadrados com banheiro.

Como em um presídio, há grades separando as alas. Onde seriam os dormitórios, na verdade, são celas e nenhum deles tem banheiro.

Canellas - Tem banheiro aí?
Menino - Não!

O material de higiene é racionado. O banho é coletivo. Com capacidade para 60 pessoas, a unidade tem hoje 154 internos.

Canellas - Quantos garotos tem aí dentro?
Menino - Cinco! E ainda vão ter seis nesse quarto, como é que a gente vai dormir aqui?

Os corredores são escuros, as paredes úmidas e mofadas.

Canellas - Faz frio à noite aqui?
Menino - Tem um dormindo na pedra ali, colchão dobrado porque não tem espaço, como é que vai caber cinco ali?

Canellas - Vocês estão em quatro aqui?
Menino - Cinco. O outro está na escola.
Canellas - A janela não abre? Não abre e não fecha, né?

Nenhuma das celas tem a medida exigida por lei.

Canellas - Essa cela não tem nove metros quadrados?
Promotor - Não. Essa cela tem 7 metros e 40 centímetros quadrados.

Encontramos um jovem com sinais de espancamento.

Canellas - Esse olho o que foi?
Menino - Foi polícia.

O adolescente entrou na unidade sem ter feito exame de corpo de delito.

“O guri entra no sistema e ele tem que vir pra cá já constatada a lesão, pra evitar que tenha alguma suspeita que tenha sido aqui dentro”, explica o promotor.

As refeições são feitas dentro das celas porque o refeitório foi interditado por falta de higiene.

“Nós tínhamos problemas com os banheiros, e o problema terminava refletindo no refeitório porque tinha problema de infiltração, enfim, mas que está sendo resolvido isso aí”, afirma Joelza Andrade Pires, presidente da Fund. Antendimento Socioeducativo/RS.

Canellas - Eles se queixam muito do frio, né? O inverno do Rio Grande do Sul não é brincadeira, e as janelas estão trancadas.

Promotor - Estão trancadas. Isso é objeto de um acordo onde, em 180 dias, essa unidade deverá estar integralmente reformada.

O governo do estado acena com a construção de quatro novas unidades. A Secretaria de Justiça afirma que as obras começam ainda em 2012.

O Fantástico entrou também na Unidade de Atendimento Inicial de Vitória. Os garotos dormem amontoados, muitos ao lado de banheiros entupidos. “Nós parece (sic) que vive no chiqueiro”, diz o menino.

O Brasil é réu na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não garantir a integridade dos adolescentes sob a tutela do estado do Espírito Santo.

Em fotos tiradas em abril deste ano, jovens aparecem dormindo algemados. Em celas infestadas de mosquitos, os internos queimam a espuma do colchão para espantar os insetos.

“Sai fumaça e espanta os mosquitos”, diz o menino. Na unidade feminina, em Cariacica, encontramos adolescentes que estão há meses em celas escuras e cheias de infiltração.

Canellas - Você está grávida?
Menina - Estou.
Canellas - Quantos meses?
Menina - Cinco.

O governo do Espírito Santo informou, em nota, que as duas unidades mostradas na reportagem, a masculina e a feminina, serão desativadas. Disse ainda que a denúncia na Corte Interamericana reflete uma situação antiga, de 2009.

No Centro de Atendimento ao Menor de Aracaju, há jovens encarcerados em solitárias.

“Tem dois meninos que a ordem foi não misturar com nenhum”, diz um homem.

Encontramos um jovem em uma cela sem banheiro.
Canellas - Quanto tempo você está nessa cela?
Menino - Rapaz, já tem 40 dias.

Depois do almoço, ele usa o prato da quentinha como privada. E passa dias a fio dobrando papéis que não serão usados para nada. Tarefa inútil que lhe foi imposta apenas para que ele tenha o que fazer.

O governo de Sergipe diz que a orientação é para que os internos sejam tratados com dignidade e que o não cumprimento desta rotina será apurado por sindicância.

No Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro, ouvimos denúncias de tortura e espancamento.

“Quando eles bota (sic) pra esculachar, bota todo mundo ali no quadrado, manda todo mundo sair pelado, bate na cara”, dizem os meninos.

O Departamento de Ações Socioeducativas do estado do Rio diz que as denúncias serão apuradas. E que as unidades têm câmeras de vídeo que filmariam as agressões se elas tivessem ocorrido.

Em Porto Velho, no Centro Socioeducativo 2, um desabafo na parede: "Só a morte pode me libertar".

Os internos têm de se empoleirar para escovar os dentes, aproveitando o único fio de água que escorre pela janela.

A descarga do banheiro é o funcionário que dá no lado de fora. A instalação elétrica é repleta de gambiarras.

Em nota, a Secretaria de Justiça de Rondônia diz que está fazendo reformas e adaptações para melhorar a ventilação. Além de reparos nas estruturas hidráulica e elétrica.

A qualidade da comida também gera violentas reclamações aos funcionários.

Conflitos entre internos e agentes podem acabar em rebelião. Como a de fevereiro de 2011, no Centro Socioeducativo de Sete Lagoas, em Minas. Imagens inéditas, que o Fantástico mostra em primeira mão.

O que determina o comportamento desses jovens? Se há um traço comum entre os internos é a desestruturação da família.

Canellas - Sua mãe está presa, né?
Menino - Está presa.
Canellas - E você tem contato com ela?
Menino - Não. Eu morei com a minha mãe só até os 2 anos.
Canellas - E o seu pai vem te visitar?
Menino - Não.

O pai o espancava, por isso, ele fugiu de casa. “Para mim ter (sic) um prato de comida pra comer e um teto pra morar eu comecei a vender uma droga para os outros pra poder sobreviver, com 11 anos”, diz o menino.

Vivendo nas ruas de Porto Alegre, sem frequentar a escola, ele foi flagrado três vezes vendendo drogas em bocas de fumo.

“Muita gente acredita que um menino como você, de 17 anos, que passou aqui pela terceira vez não tem mais solução. Você sabe que tem gente que acha isso né?”, pergunta Canellas.

“Eu acho que isso aí de não ter mais solução é uma palavra muito forte, porque se eu quero mudar eu vou mudar. Se eu botar na minha cabeça que eu vou mudar, eu quero, eu posso e eu vou. Qualquer oportunidade eu iria agarrar, porque é uma oportunidade, e eu não posso desperdiçar, é uma oportunidade pra largar o crime de mão”, diz o menino.

Geração de oportunidades é o que propõe o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Para a organização, a ênfase na educação e na oferta de caminhos para mudar de vida é a chave da recuperação dos jovens em conflito com a lei.

“Por mais óbvio que pareça que se aquela criança for tratada de forma indigna ela tende a se revoltar e vai ser pior para a sociedade, isso não fica claro na compreensão das pessoas. O sentimento é irracional: ele é um monstro, eu quero que ele se afaste de mim, eu quero que ele se afaste do mundo social e, no limite, eu quero que ele seja eliminado”, diz Jaílson de Souza e Silva, geógrafo do observatório de favelas.

Michelle Félix correu o risco de ser eliminada. Hoje quer mudar o mundo.
Canellas - Como é que se muda o mundo?
Michelle - Eu acho que fazendo a diferença. Na atitude, no pensamento, na opinião.

Ela ficou internada por mais de um ano por envolvimento com o tráfico. Mas um projeto do Degase, o órgão responsável pela aplicação de medidas socioeducativas no Rio de Janeiro, a transformou em apresentadora. “Participei da primeira turma da TV Novo Degase. É a primeira TV socioeducativa do mundo”, conta.

Ela foi até para Brasília entrevistar políticos. “E a TV Novo Degase é uma janela das grades para sociedade”, explica.

E aprendeu a ter olhar crítico sobre o mundo. “Será que Brasília tem comunidade? Favela?”, questionou. Como aprendiz de repórter, descobriu as contradições da vida. “Estamos no outro lado de Brasília, um lado sem vigilância, sem moradia, sem saúde, sem saneamento básico”.

E usou os ensinamentos da TV Novo Degase para se convencer de que podia mudar. “A gente é prova disso. A gente passou pelo sistema, e hoje a gente está aí trabalhando e ganhando dinheiro com isso. Por que não pode?”, questiona Michelle.

Ninguém mais do que o ex-interno Murilo Barcellos sabe o quanto um jovem pode mudar. “Comecei a me perder na rua com as amizades”, conta. Ele tinha 17 anos quando tramou um assalto. Só que a vítima era um experiente policial da PM gaúcha, Antônio Brasil, que reagiu dando três tiros na perna rapaz.

“Ele pegou, me virou, e não sei o que ele olhou nos meus olhos, botou a arma na minha boca, foi para me matar eu acho, não sei o que falaram na cabeça dele, eu sei que fechei os olhos, pensei na minha mãe, e não, não foi”, conta Murilo.

Murilo ficou oito meses cumprindo medida socioeducativa. “Uma lição de vida. Eu achei uma lição”, diz Murilo.

Mas ele nunca imaginou que ficaria frente a frente com o policial que poupou a sua vida. Foi durante a audiência do projeto de Justiça Restaurativa em que a vítima, o autor do delito e as duas famílias se reúnem para falar sobre o episódio. Na época, Murilo ainda era interno, por isso ninguém é identificado no vídeo da Justiça gaúcha.

“Eu peço desculpas para ele na frente de todo mundo, da família dele que está aqui na frente agora”, diz Murilo.

“Não existe a mínima mágoa. Eu gostaria muito que o teu pai e a tua avó, até a tua madrasta, olhassem pra ti com orgulho, que nem eu olho pro meu filho”, afirma o ex-policial.

Salete dos Santos, a avó de Murilo, contou o que disse para o policial no dia da audiência: “Moço, meu neto é gente boa, ele nunca fez essas coisas”, revela a avô.

“A sinceridade estava explícita nos olhos dela, o que ela queria em relação ao neto. A gente aprende a ter carinho pelas pessoas, pelos gestos”, conta Antônio Carlos Brasil Conceição, ex-policial.

A audiência provocou uma revolução na vida de Murilo. “Acho que a minha vida tem antes daquilo e depois daquilo. Para mim, ele foi um anjo da guarda. Se não tivesse acontecido aquilo comigo, eu podia estar pior”, diz Murilo.

As duas famílias ficaram amigas. Brasil tornou-se um conselheiro frequente. E Murilo, hoje com 23 anos, prospera à frente de uma pequena empresa de transportes de carga. “Eu penso grande”, diz o jovem.

Canellas - Está ganhando dinheiro?
Murilo - Olha, dá pra viver.
Canellas - É um empresário?
Murilo - Microempresário.

O que dizer quando se tem o futuro a construir? “Só alegria agora”, garante a avó de Murilo.

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Comunidades:

Comments

imagem de Daiane Tavares

Até quando?

Diante desse cenário lamentável tenho duas perguntas:

1. Quais os projetos dos governos estaduais para mudar a realidade indecente das unidades fechadas de internação?

2. Até quando será aplicada de maneira desmensurada a medida de internação em um contexto onde 62,8 % dos adolescentes em conflito com a lei cometeram delitos contra o patrimônio? 

As medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade) são de responsabilidade dos municípios e percebemos que há uma grande deficiência de estruturas para a aplicação destas, poucas varas especializadas e reduzido número de defensores públicos...Sendo assim, os meninos POBRES são "jogados" no regime fechado que não tem nada de socioeducativo....

Até quando????

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imagem de Adriana Lustoza

Onde estão os magistrados?

  Difícil é fazer valher os direitos dos "sujeitos de direitos", mas também impossível administrar estes locais abarrotados de vidas esfaceladas que mesmo com propostas diferenciadas em alguns casos como é o estigmatizado Instituto Padre Severino tem que conciliar ECA, SINASE, TAC e tantas outras Leis, normas e normativas quando os Juízes que para lá encaminham os meninos que fazem parte do "navio negreiro do século XXI" nunca pisaram ou conheceram a realidade da logística do local. Trabalhei vários anos por lá na escola estadual que pasmem, a maioria nem sabe que existe e funciona em dois turnos manhã e tarde. Vivenciei está angústia, revolta, mas ao longo dos anos percebi que existe uma engrenagem falha dos magistrados que enviam como pacotes SEDEX os meninos para "SANEAR" seus municípios, tendo em vista que o IPS recebe meninos oriundos de todos os municípios do estado do Rio de Janeiro, então manter uma média de 120 meninos naquele local para um atendimento no mínimo digno se torna impossível pela rotatividade criada e imposta pelos senhores juízes que reforçam a INTERNAÇÃO como primeira e única medida para os adolescentes que de alguma forma não se enquadram no perfil "ajustado". Estive presente em uma das visitas em 2011 em que um JUIZ de Brasília muitíssimo educado e de fato comprometido com a situação afirmou após chegar pela manhã no IPS com mais ou menos 300 meninos e a noite por volta das 18:00 já estava com 384 e sendo avisados que chegariam mais... " Não podem fechar as portas... rsrsrs" E todos fomos unânimes em dizer: "Não, senão nós é que seremos presos." Então, como administrar essa rotina hercúlea, desumana para quem lida com os meninos, acelera os pedidos e encaminhamentos para que os prazos sejam respeitados, os agentes que minimizam o stress da superlotação, enfim e a dignidade daqueles que cumprem a medida para no mínimo refletir sobre o seu "estar privado de liberdade". Que acelerem as obras para descentralização dos encaminhamentos ao IPS e melhorem as políticas nos outros estados que também tem como já visitei uma CASA MODELO para os de primeira vez e um caldeirão de terror para os que reincidem no erro de roubar uma galinha, bicicleta ou próximo a isto. Cadê os juízes "especialistas" na compreensão do Estatuto da Criança e do Adolescente? Quem são os magistrados que nos empurram os meninos como que para saneamento básico? Não são os mesmos que atuam em outras áreas e com maior conhecimento e afinidade? A mesma mídia que informa, reforça o saneamento dos municípios, porém nos impele cada dia mais na luta pelos direitos desses TAMBÉM "sujeito de direitos".

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