Escolas intinerantes

[Matéria publicada originalmente em Revista Escola, por Marina Almeida]

Escolas em movimento

Escolas de acampamentos sem-terra lutam por reconhecimento nos estados; além da mobilidade, unidades têm infraestrutura e organização diferenciadas, que se adaptam às necessidades dos alunos itinerantes do campo Marina Almeida Adaptadas à mobilidade dos acampamentos sem-terra, escolas itinerantes evitam transferências de alunos e transporte ruim

Escolas construídas em poucos dias, muitas vezes de lona ou madeirite, com carteiras adaptadas e sem energia elétrica. Apesar da aparência precária, as unidades representam um avanço para o ensino das crianças que vivem em acampamentos itinerantes de trabalhadores rurais. Se o acesso à escola no campo ainda é um desafio para o país, quando as famílias não têm residência fixa, a dificuldade ganha novas proporções. Para garantir o direito à educação dos filhos de camponeses que participam de organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um modelo diferenciado de ensino é adotado em diversos estados brasileiros: as escolas itinerantes. 

Sem estrutura fixa, elas podem acompanhar os alunos e suas famílias durante as marchas e acampamentos realizados pelo interior do Brasil. Para cursar escolas regulares, os alunos dependem do transporte escolar em áreas distantes e com estradas em más condições. Além disso, as crianças precisam trocar de escola constantemente. "Elas têm dificuldade de se adaptar a tantas mudanças e, muitas vezes, ainda sofrem com o preconceito por serem de famílias sem-terra", diz Alessandro Santos Mariano, professor e coordenador do setor de Educação do MST do Paraná. No entanto, o formato itinerante, que envolve a gestão compartilhada das unidades, ainda sofre dificuldades para se consolidar em muitas regiões.

Presentes atualmente em quatro estados brasileiros, as escolas itinerantes estão ligadas à rede estadual de ensino, até porque os acampamentos podem atravessar vários municípios. "A iniciativa é nossa de contatar as secretarias de Educação e propor o modelo. As dificuldades que surgem são mais por conta de influências políticas que por questões legais", conta Maria Cristina Vargas, da Coordenação Nacional de Educação do MST. Como não há uma regulamentação nacional sobre o tema, essas escolas precisam ser aprovadas pelos Conselhos Estaduais de Educação (CEE) e o processo pode ser bastante demorado. Cristina diz que uma regulamentação nacional poderia evitar muitos problemas, embora a atual legislação brasileira já seja suficiente para garantir o funcionamento das unidades: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) traz abertura para as escolas do campo se organizarem de acordo com o ritmo da comunidade rural.

Implantação
No Piauí, a discussão sobre as escolas itinerantes levou quatro anos, mas desde 2008 elas funcionam de forma regularizada. "Usamos o projeto apresentado pelo MST e nos baseamos na experiência de outros estados que já haviam implantado o modelo", conta a supervisora da Secretaria de Educação Míriã Medeiros. Das três unidades criadas inicialmente, apenas uma ainda funciona nesse formato: um dos acampamentos se desmobilizou, o outro se tornou um assentamento regularizado pelo governo e sua escola deixou de ser itinerante. Quando se fixam, as escolas de nível fundamental são assumidas pela rede municipal, o que também pode trazer dificuldades. "O assentamento mexe com as estruturas de poder local, que estão mais distantes do estado, mas muito próximas das cidades. Às vezes, as redes municipais não querem oferecer vagas para os sem-terra nem nas escolas que já existem", diz.

"A maior dificuldade é fazer todos entenderem a necessidade de escolas que funcionem nesse formato diferenciado, pois, além da Educação, o processo envolve secretarias como a do Planejamento e da Fazenda", conta José Raildo Pereira, assessor técnico-pedagógico da Secretaria de Educação de Alagoas, onde existem dez escolas itinerantes. No estado, as unidades funcionam por meio de um convênio de cooperação mútua entre governo e acampados. "Para renová-lo, com a documentação e plano de trabalho, levamos de seis meses a um ano. Nesse intervalo, a escola só funciona por causa da militância dos professores, que ficam sem receber, mas não param as aulas."

A gestão das escolas itinerantes é compartilhada entre as secretarias de Educação e os acampados. A Secretaria repassa a verba para que a escola funcione, para a merenda, material didático e pagamento dos professores, mas a construção das escolas, por exemplo, é feita pelas famílias sem-terra na maioria das vezes. "Nessas unidades, usamos materiais semelhantes aos das casas dos acampados e com os quais eles sabem trabalhar. Sua obra também precisa ser feita com uma rapidez que o estado não consegue acompanhar. Por conta da demora, a comunidade chega a usar seus próprios recursos para fazer a escola", explica o professor Mariano, do Paraná.

 

Gestão
Como sua estrutura administrativa é reduzida, até por conta da mobilidade, as escolas itinerantes funcionam ligadas a uma escola-base. É nessa unidade que os alunos dos acampamentos são matriculados e é ela a responsável pela documentação e transferências dos alunos. Funcionando dentro de assentamentos (já regulamentados, portanto), essas escolas conhecem a dinâmica e especificidades dos movimentos de luta por terras, mas possuem a estrutura física e técnica das demais escolas estaduais.

O Projeto Político-Pedagógico (PPP) do Colégio Estadual Iraci Salete Strozak, que é a escola-base do Paraná, também rege as unidades itinerantes. "A direção visita essas escolas e busca elaborar um PPP que atenda a essas diversas necessidades", conta Cláudia Regina Chagas, coordenadora de educação escolar do campo da Secretaria Estadual de Educação. 

Este ano, houve troca no governo estadual, o que trouxe apreensão para os sem-terra. "Como o formato das escolas é bastante diferenciado, pode levar tempo até que compreendam o projeto e garantam a manutenção das políticas", diz Mariano. A Secretaria de Educação do Paraná garante que as escolas itinerantes serão mantidas e estuda reestruturá-las. "Analisamos a possibilidade de criar mais escolas-base para diminuir a distância entre elas e as itinerantes, facilitando o contato", conta Cláudia.

O Paraná possui cerca de 1.200 alunos entre a escola-base e as dez itinerantes. Apesar de serem 67 os acampamentos do estado, os mais próximos aos centros urbanos e com poucos alunos utilizam as escolas regulares da região. A maioria das unidades itinerantes atende a educação infantil e os primeiros anos do ensino fundamental, mas há quatro escolas que vão até o ensino médio na região. Mas o atendimento desta etapa ainda é um desafio para o país. "Há poucos acampamentos com ensino médio; quando não é possível implantá-lo no local, tentamos matricular os alunos na escola mais próxima", explica Cristina, da coordenação do MST.

Educadores
Políticas para a qualificação dos professores são uma demanda das itinerantes. Para os primeiros anos do ensino fundamental ou da educação infantil, os professores são, em geral, do próprio acampamento. Possuem um nível mínimo de escolaridade - muitos cursam Magistério ou Pedagogia - e passam por formações nas escolas do MST ou em cursos da Secretaria Estadual de Educação. "É muito difícil fixar professores de fora da comunidade porque as distâncias são longas e a vida no acampamento, muito dura", explica Isabela Camini, que pesquisou as escolas itinerantes em seu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

No Paraná, Cláudia Chagas explica que os educadores dos anos iniciais são contratados via a Associação de Cooperação Agrícola e de Reforma Agrária (Cape) e os dos demais anos podem ser tanto os profissionais do estado ou os que participaram de um processo seletivo simplificado e lecionam por meio de um contrato temporário, que ainda é o mais utilizado nas escolas itinerantes do país.

Apesar das dificuldades, Miriã Medeiros, do Piauí, aponta os benefícios desse modelo: "os professores urbanos muitas vezes intimidam os alunos do campo, seu discurso e seus exemplos são diferentes e distantes de sua realidade".

Organização e pedagogia
O ensino segue as exigências curriculares nacionais para cada etapa, mas tenta se relacionar com o cotidiano do aluno. "Os professores abordam questões como a história da reforma agrária e a identidade do povo camponês. A escola normal também deveria buscar essa proximidade com a experiência de vida de cada comunidade, mas ainda estamos muito longe disso, em geral", acredita José Raildo Pereira, de Alagoas. Para ele, esse é um dos motivos para o bom desempenho dos alunos e para baixa evasão apresentada: "as crianças só deixam a escola se sua família se desligar do acampamento". Sem dados como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o desempenho dos alunos é considerado bom, ainda que sofra com limitações. "As dificuldades de aprendizagem aparecem mais nas regiões com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e alta migração", constata Cláudia, da Secretaria de Educação do Paraná.

Com grande participação da comunidade, as escolas prezam por sua autonomia. Os alunos também são incentivados a se auto-organizarem. No Paraná, por exemplo, eles se reúnem semanalmente para discutir seu comportamento, as normas da sala de aula, a limpeza da escola, o cuidado com a horta e estudar textos - ações importantes também no cotidiano de um acampamento. "A escola itinerante não se distancia da vida e por isso seus conteúdos têm relação com a luta das comunidades em que estão", diz Isabela Camini. A organização do horário das aulas também é diferente, não há férias muito prolongadas, por exemplo, e os recessos acompanham as atividades do acampamento. 

"A educação no campo é fundamental para a reprodução do modo de vida rural. A escola regular impõe o tempo e espaço da cidade a essas comunidades", diz a assessora de educação rural da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, Nancy Cardoso. Apesar disso, as escolas itinerantes do estado, o primeiro do país a regularizá-las, estão fechadas desde 2008.

Pioneirismo
Em 1996, o Rio Grande do Sul reconheceu as escolas itinerantes, que se tornaram públicas e estaduais. Antes disso, desde a década de 1980 elas já funcionavam, mas de forma irregular. Em 2009, porém, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado pelo Ministério Público Estadual (MP) e pela então secretária de Estado da Educação decretou o fechamento dessas escolas itinerantes. O MP alegava que as unidades eram precárias, itinerantes e tinham teor ideológico. "A briga é uma forma de tentar impedir a mobilização e reflete a visão de que a educação no campo é residual. Essas escolas já tinham sido aprovadas pelo Conselho Estadual de Educação e sua condição itinerante faz parte do contexto dessas famílias", diz Nancy. 

A atual gestão estadual descobriu ilegalidades no fluxo de decisão do TAC, que o invalidaram. Portanto, não há mais limitações legais que impeçam o funcionamento das escolas itinerantes. Segundo Nancy, a Secretaria está fazendo um levantamento das famílias acampadas no estado para retomar o modelo. "Estamos revendo a malha de escolas, reconstruindo a equipe para trabalhar esse tema e iniciamos sua discussão política", diz. 

"Populações como os quilombolas, ilhéus, povos extrativistas ou de colheitas, por viverem em regiões afastadas ou serem povos em movimento, têm necessidades parecidas com a nossa e precisam de políticas que garantam o direito de suas crianças à educação", diz Mariano. O professor defende um financiamento diferenciado nesses casos, pois as necessidades de estrutura e acesso são maiores. 

Para Miriã, ainda é necessário combater preconceitos para que as políticas possam avançar. "No Piauí, tivemos dificuldades com algumas equipes que não aceitavam discutir com esses grupos, nem suas práticas culturais."

 

Educação na reforma agrária Regulamentado em novembro de 2010, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), criado em 1998, passou a ser política pública e a ter assegurados seus instrumentos de execução e gestão. Voltado, sobretudo, para assentados, aqueles que já receberam terra do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA), o Pronera também pode atender a população acampada, desde que ela esteja cadastrada e, portanto, seja reconhecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como potencial beneficiária do PNRA. 

Os cursos do Pronera vão da Educação de Jovens e Adultos e ensino fundamental ao ensino superior. Atualmente, são atendidas mais de 3.500 pessoas em todos os estados brasileiros. O ensino é realizado por instituições de ensino que, em parceria com as organizações de representação dos assentados, recebem recursos para desenvolver seus projetos. A linha pedagógica dos cursos deve estar articulada com um projeto de desenvolvimento local. "É neces­sário adaptar o curso a cada realidade e estar em permanente diálogo com a população", explica a coordenadora do Pronera, Clarice Aparecida dos Santos.

 

 

 

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Comments

imagem de mmoreira

Achei interessante trazer

Achei interessante trazer essa matéria como mais uma forma de ampliar nosso conhecimento sobre a realidade da educação.

Na matéria, pessoas apontam que o ensino deveria ser diferenciado na cidade e no campo. Será? De qualquer forma, é preciso pensar no papel da escola com a localidade e como a escola permite dispositivos aos alunos de interagir no espaço, seja urbano ou rural.

Existem outros assuntos também, mas deixo para vocês encontarem.

De qualquer forma, não sabia da existência dessas escolas e achei legal postar.

Abs

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