Monoculturas da mente: Vandana Shiva nos ensina a pensar os esapços que educam.

SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectiva da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo: Gala, 2003. Trad. Dinah de Abreu Azevedo.
Resenhista: Dalva Ribeiro Vieira
O vocábulo monocultura, de acordo com o dicionário Aurélio, significa cultura exclusiva de um único produto agrícola.  Todavia, Vandana Shiva, em seu livro “Monoculturas da mente”, o emprega em uma acepção diferente ao usá-lo para se referir ao modo de pensar da sociedade atual. O texto é leitura imprescindível para educadores, porque, acredita-se, uma mudança do atual paradigma social só se efetivará pela educação. Todavia, tem-se a impressão de que é leitura essencial para toda a sociedade, que necessita, urgentemente, desalienar-se, livrar-se do véu da ignorância, sair da caverna em direção à luz, como se imaginou que fizesse aquele prisioneiro do “Mito da Caverna” de Platão.
No primeiro capítulo, cujo título é o mesmo que dá nome ao livro, a autora reflete sobre o pensamento unilateral que se instalou no mundo, denominando o processo de “monoculturas da mente” e discorre sobre as consequências desse tipo de monocultura para o planeta. Segundo ela, a monocultura começa primeiro na mente para só depois chegar ao solo. Para que isso aconteça, é preciso que exista um grupo ou um sistema que se autodetermine superior, sobretudo em termos de conhecimento e cultura, e crie mecanismos para imprimir nas outras sociedades suas formas de pensar e de estar no mundo.
Na concepção da autora, a cultura e o conhecimento científico ocidental tornaram-se hegemônicos e passaram a ser encarados como únicas formas possíveis de se conceber a realidade e atuar no mundo. Aquilo que o conhecimento cientifico não valida passa a ser encarado como anticientífico, primitivo e, com o tempo, torna-se inexistente.
Ela afirma que o destino dos sistemas locais de saber em todo mundo são subjugados por políticas de eliminação e não por políticas de diálogo e que o desaparecimento do saber local para dar lugar ao saber ocidental dominante acontece em muitos planos, por meio de muitos processos. Conforme a autora, a forma mais eficaz de fazê-lo desaparecer é negando sua existência.
Contudo, um tipo de conhecimento ou determinada cultura não ganham o status de superior simplesmente porque realmente o é. Isso acontece por meio da dominação. Como assegura Shiva, poder e saber são indissociáveis e a ligação entre os dois é inerente, porque tem a ver com a forma que alguns grupos passaram a ser vistos com a ascensão do capitalismo social. Nesse sentido, para que um grupo ou determinada nação consiga impor sua forma de pensar ao mundo, é necessário que tenha poder aquisitivo e que o tenha em maior valor do que os grupos que deseja dominar.
A autora salienta que esse poder ainda se torna mais forte e ganha validade, porque se tende a conceber o sistema dominante não como uma tradição local globalizada, mas como uma tradição universal, que é superior aos sistemas locais. Entretanto, assegura a autora, “o saber dominante também é produto de uma cultura particular” (SHIVA, 2003, p. 22).
No entanto, as sociedades que estão sob o jugo desse poder parecem alienadas e reproduzem o pensamento, modo de vida, modos de produção do sistema dominante, sem nenhum pensamento crítico a tal respeito. Mas isso não acontece por acaso, simplesmente porque as pessoas gostam de ser dominadas e desejam isso. Os sistemas dominantes atuam de maneiras diversas para que seu saber continue perpetuando e para que permaneça reinando absoluto, desconsiderando todos os outros saberes.  Shiva assevera que, ao se colocarem em uma posição superior aos outros sistemas de saber e, concomitantemente, fazer com que sejam desacreditados, o sistema dominante cria seu monopólio exclusivo.
A mídia é um dos grandes instrumentos usados para isso. Nos meios de comunicação, por exemplo, principalmente nos programas destinados às classes mais baixas, há um bombardeamento de propagandas, slogans que encorajam as pessoas a se adequar à forma ocidental de pensar e estar no mundo e outras tantas ou mais propagandas e slogans que dizem àqueles que não se adequam que estão fora e que, se não passarem a encarar aqueles saberes e cultura como suas, serão colocados à margem e considerados como inexistentes. Obviamente, que essas mensagens são implícitas, mas nem por isso, deixam de atingir o resultado desejado.
Além da mídia, a educação, que deveria exercer um papel totalmente contrário, tem sido uma aliada eficiente dos sistemas dominantes, porque reproduzem e tentam incutir nos estudantes, ainda que não seja de forma totalmente intencional, os saberes científicos e os elementos da cultura ocidental.  A escola deveria ser o espaço que promoveria o diálogo entre os conhecimentos científicos e todos os outros tipos de saber. Também deveria possibilitar o confronto entre várias culturas, mas isso raramente acontece. Assim, se não há nenhuma reflexão, sobra espaço para a alienação e para que as sociedades subjugadas acabem por acreditar que existe um padrão a ser seguido e devem, portanto, se adequar a ele ou, na maioria das vezes, para que assimilem tudo, sem nem perceber a dominação.
Ao agir dessa forma, para Boaventura, os espaços escolares têm sido produtores da “não existência”. Ele elenca cinco lógicas de produção da não existência, mas destacar-se-á, nesse trabalho, apenas duas: a lógica da monocultura do rigor e do saber e a lógica da escala dominante. Segundo o autor, a monocultura do rigor e do saber é o modo de produção da não existência mais eficaz, porque considera a ciência moderna e a alta cultura como únicos critérios de verdade e qualidade estética. As duas acreditam ser cânones exclusivos de produção de conhecimento ou criação artística. Nesse sentido, tudo que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente. A não existência, nesse caso, assume o caráter de ignorância ou incultura. (BOAVENTURA, 2004)
A lógica da escala dominante, de acordo com ele, tem a ver com a monocultura do universal e do global. Nesse sentido, a escala adotada como primordial determina a irrelevância de todas as outras possíveis escalas. Diz ele que, na modernidade, as duas escalas dominantes são a universal e a global. Segundo essa lógica, a não existência é produzida sob a forma do particular e do local. Na concepção do autor, trata-se de formas sociais de inexistência porque:
as realidades que elas conformam  estão presentes apenas como obstáculos em relação às realidades consideradas relevantes. São partes desqualificadas de totalidades homogêneas que, como tal, confirmam meramente o que existe e tal como existe(...) A produção social destas ausências resulta no desperdício da experiência social. (BOAVENTURA, 2004)

Shiva afirma que o saber universal deveria disseminar-se imparcialmente e, se isso não acontece com o saber ocidental é a prova maior de que não é um saber universal, mas sim um saber local globalizador, que se espalha pela violência e pela deturpação. Segundo ela, o primeiro plano dessa violência é não considerar todos os saberes não-científicos um saber.  Conforme a autora, a invisibilidade é o principal fator que leva ao fim os sistemas locais sem que ao menos sejam testados e comprovados ao ser cotejados com o saber dominante ocidental.
Boaventura parece compartilhar com a ideia de Shiva, no que diz respeito ao monopólio do saber ocidental.  Segundo o autor, as linhas cartográficas que colocavam, de um lado, o Novo Mundo e, do outro, o Velho Mundo não existem mais concretamente, mas perpetuam-se de outras formas. Ele usa a metáfora da linha para desenvolver a ideia de que o conhecimento moderno é abissal. De um lado da linha, l a conforme o autor, está a ciência, a filosofia e a teologia. Do outro, conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas. Estes, não são aceitos, pois não são verdadeiros, ou melhor, não serem testados tal qual ciência; tampouco se encontram entre aquilo que não se pode provar, como a filosofia e a teologia. O problema disso tudo, na opinião do autor, é que esses grupos, que ficam do outro lado da linha, são portadores de uma experiência que é desperdiçada, tornada invisível assim como os seus autores.
Shiva também toca nesse ponto ao assegurar que, quando o saber dominante declara que o saber local não existe, não somente o torna invisível  e ilegítimo como também elimina as alternativas, “apagando ou excluindo a realidade que elas tendem a representar” (SHIVA, 2003, p. 25.). Por meio de tal mecanismo o saber científico dominante cria, na opinião dela, uma monocultura mental “ao fazer desaparecer o espaço das alternativas locais, de forma muito semelhante à das monoculturas das variedades de plantas importadas, que leva a substituição e destruição da diversidade local” (SHIVA, 2003, p. 25.).
No que diz respeito à eliminação das alternativas, a autora dá vários exemplos. De acordo com ela, enquanto determinado saber local consegue reconhecer na floresta 10 tipos de plantas, por exemplo, o saber científico reconheceria apenas 6.  Continua exemplificando e diz que, enquanto aquele admite a possibilidade de realizar atividades com a silvicultura e agricultura, este precisa eliminar a agricultura para dar lugar à silvicultura. Para o saber local, seria possível cultivar em determinado espaço vários tipos de cereais; o cientifico só vê a possibilidade do trigo ou soja.
A autora narra casos de tribos em que a maior parte da alimentação vem de tubérculos, plantas e sementes comestíveis. Seus habitantes percebem as inúmeras funções da natureza como o caso da cobertura vegetal que fornece água e conserva o solo, a forragem, que pode ser utilizada como fertilizante. O saber científico, no entanto,  ignora ou desconsidera todos esses conhecimentos.
Basta analisar as formas pelas quais se tem explorado as florestas por meio da silvicultura. A primeira coisa que se faz é a limpeza do solo, retirando dela todos os nutrientes, toda a diversidade existente, para se plantar um único tipo de produto. Depois aplicam neles, os adubos químicos, após terem desperdiçado tudo que a própria natureza poderia oferecer.
A introdução da silvicultura, conforme a autora, deu fim deu fim a muitos saberes e, mais e pior do que isso, fez com que os sistemas locais incluíssem em suas práticas de manejo do solo, as utilizadas pelo saber dominante. A esse respeito, Shiva chama a atenção para o fato de que, quando as florestas eram administradas pelos saberes locais, eram renováveis, porém, ao passarem a ser vistas como fábrica de madeira pelo saber científico perderam essa característica.
É evidente que não se esgotaram nestas poucas páginas todas as informações contidas no primeiro capítulo da obra supracitada, mas acredita-se que o exposto é  suficiente para se sugerir uma reflexão final, que será feita com base no pensamento de um grande pensador latino – Silviano Santiago. Esse escritor, há algum tempo, vem discutindo a noção de “entre-lugar” e faz isso, especificamente, no que diz respeito à produção literária. Ele afirma que os escritores podem e até devem ser deglutidores das produções ocidentais, mas que devem construir um espaço em que possam escrever sobre suas próprias realidades, livrando assim suas obras da característica de serem apenas simulacros.
A leitura do texto de Shiva alerta para o fato de que já está mais do que na hora dos saberes locais tentarem construir esse entre-lugar. Se não por qualquer outro motivo, que seja apenas pela certeza de que é extremamente perigoso para toda a sociedade continuar pensando de maneira ocidental e reproduzindo acriticamente os modos de ser e de fazer desse sistema dominante, uma vez que é perceptível que o planeta não se sustentará por muito mais tempo se se continuar a agir dessa maneira.  O entre-lugar que se deve buscar significa, conforme Santiago, falar contra, escrever contra, pensar e agir contra em resposta ao pensamento ocidental, que vê o resto do mundo apenas como consumidores passivos.
Shiva parece estar tentando construir esse entre-lugar e faz isso se posicionando contra as formas de opressão, sobretudo, da opressão da mente. Enquanto, alguns outros intelectuais, atores, cantores usam sua influência para defender o agronegócio, para tentar manter o status quo que está posto, ela adverte, para a necessidade de se buscar outras formas de vida, outros modos de produção, de ser, de fazer enfim, de estar no mundo.

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imagem de Rafael Pereira Santos

Popularização e emancipação dos saberes

Os saberes são multiformes, assim como a natureza das pessoas. Ele se constrói na diversidade existencial das pessoas.  Há múltiplos saberes que transcendem a universidade e a escola. Embora constate que temos uma lente de visão subserviente e dependente do modelo europeu, nos últimos tempos, o modo de pensar neoliberal norte americano tem sido o paradigma consumido por muitos professores universitários.  Esses são leitores vorazes dessas literaturas. As universidades têm discutido muito sobre o conhecimento que existe além de seus muros institucionais. Ao pensar que sua função social é ser polo de radiação e síntese dos saberes, acaba muitas vezes silenciado ou se sentido na função de legitimadora dos saberes que surgem fora de seus muros-cercas. Na verdade, as formas organizacionais de ensino se setem como o espaço de construção ou de lapidação do conhecimento de fora que ela favorosamente aceita. Até hoje, no Brasil, são raras as universidades no campo, nas periferias ou em locais distantes dos grandes centros. Isso significa que além de o conhecimento acadêmico ser hierárquico, contraditório, e monolítico ela é geograficamente distante daqueles que de fato necessita da mesma.  Urge a necessidade de descentralização de áreas dos saberes. Isso significa que tais áreas devem ser popularizados sem perder a qualidade. Se importamos profissionais e o estado investe na formação dos mesmos, isso significa que ausência de profissionais em áreas básicas, ao meu modo de ver, se devem a política de monopolização de áreas do conhecimento nas mão de classe média alta. Acredito que não somente a monocultura do saber como também a hierarquização do mesmo são igualmente prejudiciais e nefastas para um projeto de república democrático,  participativo e emancipador. Além disso é necessário construir (dando espaço) para políticas emancipatórias das bases. O prouni e similares é um caminho, mas ainda não solucionou parte dos problemas.

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