Governo rifa os direitos indígenas, diz antropóloga

Para Manuela Carneiro da Cunha, Dilma cede à pressão dos ruralistas

A professora da USP e da Universidade de Chicago fala ainda em 'ofensiva sem precedentes' contra os índios no Congresso.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das mais influentes estudiosas da questão indígena no país, acusa a gestão Dilma Rousseff de promover um desenvolvimentismo de "caráter selvagem", sem "barreiras que atendam a imperativos de justiça, direitos humanos e conservação".

Para ela, Dilma "parece estar cada vez mais refém do PMDB e do agronegócio".

Ao citar "uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios", chama a atenção para o projeto de lei --alçado ao status de urgência "com o beneplácito do líder do governo"-- que permitiria o uso de terras indígenas para várias finalidades, da instalação de hidrelétricas à reforma agrária. "Se passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas", diz.

Professora aposentada da USP e da Universidade de Chicago, Cunha também tem críticas ao Judiciário. Ela fala numa "tendência crescente e preocupante" de paralisar processos de demarcação em seu início. E estima que 90% das terras em fase de demarcação estão judicializadas.

Folha - O que distingue o governo Dilma Rousseff dos anteriores na questão indígena?

Manuela Carneiro - Neste governo a mão direita e a mão esquerda parecem se ignorar. A esquerda promove uma maior justiça social; a direita promove um chamado desenvolvimento sem qualquer limite. O problema não é o desenvolvimentismo em si, mas seu caráter selvagem: a ausência de barreiras que atendam a imperativos de justiça, de direitos humanos, de conservação. Custos humanos e ambientais não estão sendo considerados.

Assiste-se agora a uma ofensiva sem precedentes no Congresso contra os índios. São vários projetos que destroem garantias que a Constituição assegurou. E a União, que é a tutora, portanto a protetora dos direitos indígenas, não se ergue contra isso.

A própria AGU (Advocacia-Geral da União), que se pautava por uma tradição de defesa dos direitos indígenas, se aliou à bancada ruralista quando editou a infeliz portaria 303 [que estende para todas as demarcações as 19 condicionantes criadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, de Roraima].

Como interpretar as recentes ações do governo?

Adotando uma interpretação caridosa, eu diria que o governo cede a pressões dos ruralistas, e rifa os direitos indígenas em troca de apoio.

Assim, na última quarta deu-se uma manobra escandalosa na Câmara: aprovou-se colocar em votação por acordo de líderes, e com o beneplácito do líder do governo, o regime de urgência para o Projeto de Lei Complementar 227/2012, que regulamentaria o parágrafo da Constituição que trata das terras indígenas.

O que significa?

Esse parágrafo abre uma exceção nos direitos de posse e usufruto exclusivo dos índios quando se tratar de relevante interesse da União.

O projeto, de autoria do vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura, pretende definir o que seria relevante interesse público da União. É assombrosa a definição: quase tudo nela cabe.

Permitiria que em terras indígenas passassem estradas, oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias. Permitiria a concessão de áreas a terceiros em faixas de fronteira; que se mantivessem posseiros, agrupamentos urbanos, assentamentos de reforma agrária e até novos assentamentos.

Permitiria que se mantivessem todas as terras sob domínio privado quando da promulgação da Constituição de 1988.

Permitiria tudo?

Esta cláusula seria o equivalente da anistia que os ruralistas conseguiram no Código Florestal. Mas dessa vez não se trataria de escapar de multas e de ter de recompor paisagens degradadas. Seria legalizar e perpetuar o esbulho. Se uma lei como essa passar, será a destruição dos direitos territoriais indígenas.

As condicionantes do STF e a portaria da AGU que a senhora citou foram muito criticadas por indígenas e antropólogos. Quais são os problemas?

Várias dessas condicionantes surgiram como forma de permitir um consenso entre os ministros do STF em relação ao caso Raposa Serra do Sol. Quando a AGU quis estender a outros casos essas condicionantes, que ainda dependem de uma análise mais aprofundada do próprio STF, e que foram estabelecidas para aquele caso concreto, ela tentou consolidar abusivamente uma interpretação desfavorável aos índios.

Cite um exemplo

A alegada proibição de ampliação de terras indígenas. Essa condicionante se referia à Raposa. Quando se aplica essa condição às terras guaranis, demarcadas em outro contexto, décadas atrás, fica evidente o absurdo. Nesse sentido, a portaria 303 é muito grave. Denota uma intenção evidente de prejudicar os indígenas em favor de interesses econômicos.

O governo fala em envolver a Embrapa, entre outros órgãos, nos processos de demarcação. Para alguns, há uma tentativa de enfraquecer a Funai.

A presidenta parece estar cada vez mais refém do PMDB e do agronegócio, que se aliou aos evangélicos.

Esse bloco se opõe ferozmente à demarcação e à desintrusão (retirada de invasores) das áreas indígenas.

Marta Azevedo [presidente da Funai que deixou o cargo em junho] anunciou que daria prioridade às regiões onde se concentram interesses de fazendeiros. Foi um feito conseguir a desintrusão, após 20 anos, da área xavante Marãiwatsede. Com isso, cutucou-se a onça com vara curta.

Há vários modos de a mão direita do governo enfraquecer a causa dos índios. Uma é retirando atribuições da Funai. Outra é deixando-a sem dinheiro. E outra é colocando como presidente alguém a serviço de outras agendas.

Corre o boato de que o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que firmou sua carreira como presidente da Funai e cuja atuação foi muito criticada, gostaria de colocar no posto uma pessoa sua.

Ganha força no Congresso a ideia de tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações. Que tal?

Se essa Proposta de Emenda à Constituição for aprovada, acabarão os processos de demarcação, pois os direitos dessas minorias serão submetidos aos jogos de poder de todos os grupos de interesse do Congresso, sobretudo à poderosa bancada ruralista. A demarcação deixa de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico e passa ser exclusivamente política.

Em que medida o Poder Judiciário é corresponsável pela demora nas demarcações e pelos conflitos?

Estima-se que pelo menos 90% das terras em demarcação estão judicializadas. As demoras são às vezes absurdas. No sul da Bahia, o caso pataxó levou quase cem anos para ser julgado pelo STF. No Mato Grosso do Sul, há casos que estão há mais de 30 anos em processos.

Há uma tendência crescente e preocupante do Judiciário de paralisar processos de demarcação administrativa logo em seu início, com base na simples apresentação de títulos de propriedade dos fazendeiros. Teses que há alguns anos não vingavam, por não serem condizentes com a Constituição, começam a ganhar espaço.

Isso tem atrasado muitos processos demarcatórios e contribuído para aumentar o grau de conflito. Justiça que tarda não é justiça. No caso dos guaranis e caiovás do Mato Grosso do Sul, há gerações inteiras que nunca puderam viver sua cultura. A organização social tradicional não tinha como ser mantida, costumes e rituais ligados à cultura do milho não puderam ser realizados. Isso não seria etnocídio?

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