"As Cantadas" - Violência simbólica naturalizada

Natália, de 28 anos, andava por uma avenida movimentada de São Paulo com uma amiga. O rapaz que vinha na direção oposta se esgueirou entre as duas. Encarou-as de alto a baixo e soltou: “Sem calcinha vocês devem ser uma delícia”. Débora, de 29 anos, esperava o semáforo abrir para atravessar uma avenida. Foi abordada por um estranho que a convidava para um café. Puxou-a pelo braço, insistiu e depois começou a segui-la. Thatiane, de 23 anos, estava numa festa. Sentiu alguém deslizar a mão por seu corpo. Ela se voltou para tirar satisfação, e o rapaz a chamou de vagabunda. Thatiane jogou o conteúdo do copo que tinha nas mãos sobre ele. Levou um tapa na cara. Laura tinha 14 anos, estudava no centro de Porto Alegre e saiu para almoçar. Três homens cruzaram seu caminho, passaram a mão no meio de suas pernas e discorreram sobre suas partes íntimas, com uma frase que jamais poderia ser publicada em ÉPOCA.

Natália, Débora, Thatiane e Laura são minhas amigas. Não precisei ir longe para reunir essas histórias assustadoras, porque elas não são exceção. Assim como minhas amigas e eu, já passaram por situações constrangedoras nas ruas 99,6% das quase 8 mil mulheres que responderam a um questionário on-line elaborado por mim. O levantamento, promovido entre julho e agosto, faz parte da campanha “Chega de Fiu-Fiu”, organizada pelo blog Think Olga, um espaço virtual para discutir questões femininas. O percentual de mais de 99% é parecido com o encontrado num trabalho feito nos Estados Unidos pela organização Stop Street Harassment (Parem com Assédio nas Ruas). Lá, 99% das mulheres afirmaram ser incomodadas nas ruas. Como não sou pesquisadora e não usei metodologia científica, sei que meus resultados podem não ser exatos. Mas eles traçam um bom panorama do que as mulheres enfrentam – e do que sentem – quando andam pelas ruas. Como mulher e jornalista, foi a maneira que encontrei de mostrar que esse tipo de “elogio” não agrada. Ofende, humilha e causa medo.
 

É tão comum que uma mulher ouça cantadas ou passe por situações que beiram ao assédio que o assunto é pouquíssimo discutido. Parece apenas mais um fato da existência. A chuva molha. Seres humanos envelhecem. Mulheres são importunadas nas ruas. É tão frequente que algumas dizem não se importar. Parecem ter se conformado.

Imaginando que algum comentário sobre nosso corpo feito por estranhos seja admissível, qual o limite entre o elogio aceitável e a cantada ofensiva? Pode chamar de princesa? Pode passar a mão no cabelo? E colocar a mão no corpo, pode? Parece que muitos acham que sim. No levantamento, 85% das mulheres afirmaram já ter sido tocadas ao andar sozinhas. Nas nádegas (88%), na cintura (56%), nos seios (20%), entre as pernas (17%). Se isso não é agressão sexual, o que será?

Todas essas “cantadas” – da “princesa” à passada de mão – violam a intimidade feminina. O assediador parte de um princípio: o corpo da mulher é visto como público, algo sobre o qual se pode opinar e, por que não, do qual pode se servir à vontade. Como essa percepção é generalizada, a mulher que decide se manifestar contra o assédio corre o risco de ser ofendida. Vira metida, baranga e outros insultos que não cabem neste artigo. Entre as voluntárias que responderam ao questionário, 68% relataram ter sofrido intimidações verbais ao revidar. Talvez por isso, poucas mulheres reajam às cantadas que ouvem: apenas 27%. “Medo de apanhar” é uma das principais justificativas para o silêncio delas, e faz sentido. Dados da Secretaria de Política para as Mulheres mostram que 37% das brasileiras foram agredidas em vias públicas, e 29% foram atacadas por desconhecidos.

Isso significa que mais da metade da população brasileira – 51,5% de mulheres – sente medo quando sai à rua. Isso faz com que esse enorme grupo não se expresse da maneira como gostaria. Meu levantamento revela que 90% das mulheres já trocaram de roupa para sair de casa, com medo de chamar a atenção. Mais de 80% mudaram de caminho, desistiram de sair a pé ou até de ir aonde desejavam, por medo da atitude dos homens. As cantadas tolhem a liberdade da mulher. Lembro-me de como abaixava a cabeça e fingia chorar quando passava na frente de um aglomerado de homens durante a adolescência. Torcia para que se enternecessem e não me dissessem nada.

A intimidação não acontece só nas ruas. Sofri ataques pelo simples fato de ter lançado o questionário. Internautas anônimos mandaram mensagens de ódio e ameaças para o blog que hospedou o formulário. “Por fora vocês não gostam, mas por dentro adoram”, escreveu um. “Que mimimi é esse? Tem de olhar reto e, se não quiser aparecer, põe uma roupa maior”, escreveu outro. E o campeão: “Essa pesquisa é a coisa mais imbecil que já li. Vocês merecem ser estupradas”, de um usuário cujo e-mail era rapist@raperz...(estuprador@estupradores…). Gente assim deve achar que é direito dos homens cantar as mulheres. Que homem nenhum deveria se controlar perto de uma mulher, passando por cima – imagine, que absurdo! – do impulso de falar obscenidades.

Engana-se quem acha que esse tipo de violência é exclusividade do Brasil. Débora, citada no começo do texto, foi perseguida pelo rapaz em Berlim, na Alemanha. Nos Estados Unidos, o problema é tão comum que uma jornalista criou o site ihollaback.org para receber e divulgar vídeos e relatos de mulheres que passaram por situações constrangedoras. O site, que funciona a partir de financiamentos coletivos, também treina pessoas de 64 cidades em 22 países para gravar pequenos filmes de celular com flagrantes de assédio nas ruas.

Para as mulheres, é incômodo falar sobre o assunto. Elas sentem vergonha, como sugerem os relatos das voluntárias que participaram da pesquisa (além de responder às perguntas de múltipla escolha, elas podiam relatar casos que tivessem vivido). Por que as mulheres têm vergonha? Atrevo-me a sugerir uma explicação: muitas podem pensar que tiveram culpa, que provocaram de alguma maneira o comportamento dos homens. Não raro, quando sofremos uma agressão dessas, pensamos: “Como eu estava vestida?”. Como se isso fosse uma justificativa. Como se isso importasse. Esse raciocínio já é uma forma de violência. É a velha cultura do estupro, absorvida pelas próprias mulheres: “Ela mereceu”. As histórias contadas pelas mulheres que responderam ao questionário são tão chocantes, que é de estranhar que não exista nenhuma campanha pública educativa contra esse tipo de comportamento. Há adolescentes e meninas pré-púberes ouvindo ameaças à virgindade nas ruas, sob o olhar complacente de todo mundo. Essas meninas aprendem desde cedo que, em pleno Brasil do século XXI, a rua pertence aos homens, e nela a mulher anda de cabeça baixa. Já passou da hora de levantarmos a cabeça.

 

Uma pesquisa mostra que as mulheres têm medo de andar sozinhas por causa das agressões verbais – e físicas – que recebem dos homens. Quando haverá uma campanha oficial contra esse tipo de violência simbólica sofriada pela mulher?

 

Comments

imagem de Aline Ferreira

Até quando?

Natálias, Deboras, Thatianes, Lauras, Alines, Amandas, Lucianas e tantas outras.

Até quando as mulheres serão vítimas desse tipo de violência? As cantadas foram e são naturalizadas como um elogio às mulheres e assim, vamos seguindo o fluxo, achando que não há nada demais na "simples" e "inocente" fala: "princesa!".

Como foi apontado pela Karin Hueck essa violência simbólica é naturalizada, parece apenas mais um fato da existência. "Mulheres são importunadas nas ruas. É tão frequente que algumas dizem não se importar. Parecem ter se conformado."

ATÉ QUANDO? Eu me pergunto!

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