Aya de Yopougon (ou África moderna em HQ)

 

Douglas Resende

Pequenas feridas da vida cotidiana na África no lugar dos grandes males que formam a imagem preponderante que o Ocidente tem do continente. Esta é a proposta que deu impulso criativo para a feitura do livro "Aya de Yopougon", escrito por Marguerite Abouet, da Costa do Marfim, e ilustrado pelo francês Clément Oubrerie, companheiro de Marguerite na França, onde a autora vive desde os 12 anos. Premiado em 2006 como o melhor álbum de estreia no Festival Internacional de HQ de Angoulême, o volume foi traduzido para o português e editado no Brasil pela L&PM, num lançamento que desperta curiosidade por se tratar de um caso raro, no Brasil, de história em quadrinhos africana.

Enviei por e-mail algumas perguntas para a Marguerite Abouet, onde ela fala de sua irritação com o modo como a mídia insiste em enfatizar o lado ruim da África e explica sua proposta de representar um ponto de vista diverso sobre o seu continente, mais próximo da vida moderna cotidiana que ela própria teve durante a infância.

Como "Aya" é sua estreia no universo da HQ e, até então, você era uma autora desconhecida no Brasil, gostaria primeiro de ouvir um pouco de sua trajetória pessoal. Vim para a França aos 12 anos. Como a Costa do Marfim é uma antiga colônia francesa, falo francês muito bem - com sotaque, obviamente! Culturalmente falando, também não tive grande dificuldade de integração na sociedade. Com o passar dos anos, tive o desejo de escrever "Aya". Sempre senti a necessidade de retomar minha juventude na África, minhas tolices, as inacreditáveis histórias sobre o bairro, as famílias, os vizinhos. Eu não queria esquecer essa parte da minha vida, queria segurar aquelas memórias, e o desejo de recontá-las ficou mais forte com a idade.

Então você decidiu escrever "Aya"... Sim. Me senti um pouco culpada por estar contente em outro país, longe da minha família. Além disso, ficava tão irritada com o modo que a mídia sistematicamente mostra o lado ruim do continente africano, ladainhas sobre guerras, fome, Aids e outros desastres, que eu quis mostrar o outro lado, contar sobre a vida moderna cotidiana que também existe na África. Portanto, "Aya" é uma história urbana que poderia se passar em qualquer lugar do mundo.

Como você percebe, vivendo fora da África, essa imagem que o Ocidente criou do continente? Ouvimos frequentemente que os africanos vivem passando fome, doentes, em guerras de tribos e pobreza, com a mão estendida, implorando ajuda do Oeste. É interessante confirmar que a impressão de relaxamento e descuido, encontrada em "Aya", ainda existe até hoje. Mas seria legal se o continente africano fosse evocado deixando cair os estereótipos de sofrimento, porque a África é de fato um grande e diverso continente e, como em todos os outros lugares - particularmente nos Estados Unidos e Europa -, existem enormes diferenças nas classes sociais. Paradoxalmente, é uma forma de racismo velado, encoberto por boa intenção, quando ouço algumas pessoas dizerem que nunca irão à África por medo de ver esse sofrimento.

Quando você diz que propõe representar o "dia a dia da vida moderna na África", o que isso significa exatamente? Desejo simplesmente escrever uma história leve, jovem e emocionante, com um ponto de ironia sobre as pequenas feridas da vida africana, e não sobre os grandes males. Contar o cotidiano e mostrar aos outros habitantes da Terra que os africanos têm, afinal, os mesmos sonhos que todos os outros habitantes do planeta. Quero justamente mostrar o cotidiano com suas esperanças e desejos de realização, de encontrar a felicidade, sobretudo as mulheres, assim como os seres modernos da África.

E como isso é contado? Dentre outras características, com humor. Quando se conta com humor uma África urbana, toca-se todas as idades e todos os públicos. "Aya" conta simplesmente a universalidade dos encontros humanos sem moralismo nem condescendência, e nos permite destruir este tabu, que quer o Ocidente, de que, ao falar da África, é necessário ser pedagógico e didático.

Você fala muito da vida "moderna africana", mas seu trabalho tem alguma relação com a tradição? Existe essa oposição? É verdade: a África está rasgada entre a tradição e os tempos modernos. Isso é o resultado lógico do encontro entre a África e o Oeste. Na verdade, em "Aya", as mulheres se beneficiam de certos direitos, embora elas estejam sujeitas a várias ordens patriarcais: o direito e escolha de trabalhar (isso se aplica a todas as mães "yopoupan"), controle sobre os fundos domiciliares e também a escolha de ter menos filhos (verdade para a mãe de Bintou), o direito de não aceitar a poligamia, acesso a um nível básico de educação (verdade para a mãe de Aya), e também o direito ao divórcio. Esse é o lado bom dos tempos modernos que pode coexistir bem com a tradição. A tradição da hospitalidade na Costa do Marfim, que é característica tanto dos jovens como dos velhos, é uma das coisas que faz manter o respeito pelo ambiente familiar e pelos mais velhos. É por isso que, apesar das liberdades que têm, as garotas aderem a valores tradicionais em "Aya".

 

Como você vê a expressão artística das histórias em quadrinhos na África agora? Você teria a chance de fazer o seu trabalho na Costa do Marfim? Os quadrinhos são um meio interessante que é endereçado geralmente aos jovens, mas o romance gráfico tem essa particularidade de ser lido também pelos adultos –e é isso que faz do formato muito interessante. Porém, infelizmente, é de fato muito difícil para os africanos fazer quadrinhos. Há muitos talentos que têm coisas a dizer, e que não têm oportunidade de se fazerem conhecer ou de serem editados porque estão em países que não têm estrutura pra isso. Encontrei alguns autores e ilustradores em Paris. Alguns fugiram de seus países, porque eram ameaçados ou simplesmente porque não podiam ser empregados (ou sobreviver) com o seu trabalho. A maioria entre eles se recuperou fazendo pequenos bicos para sobreviver.

"Aya" é o seu primeiro trabalho publicado no Brasil, país que tem uma enorme população afro-descendente? Como você imagina que o livro vai ser "traduzido" pelos leitores daqui? Consumi filmes brasileiros quando estava na Costa do Marfim. Vi ainda minha mãe, meus primos e várias mulheres do bairro que acreditavam realmente nessas histórias e adaptavam seu ritmo de vida de acordo com as mulheres brasileiras. Se as mulheres africanas se identificavam com as mulheres brasileiras, eu penso que "Aya" poderá dar prazer às brasileiras, até porque as histórias são um pouco parecidas.

Tradução Breno Procópio

 

 

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