Sem medo de ensinar

 

[Publicado orginalmente em Ciência Hoje, por Thiago Camelo, em 21/03/2012]

O ‘Alô, Professor’ entrevistou o físico responsável pelo projeto que vem mudando o currículo de física do ensino médio em São Paulo, introduzindo conceitos de fronteira nas aulas dos colégios públicos do estado e interferindo no vestibular.

O processo já começou. A prova da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) deste ano já cobrou. O exame para ingressar na Universidade Estadual de Campinas também. E, como se despertassem de sobressalto de um longo sono, os professores de física do ensino médio perceberam: é hora de ensinar física moderna nas escolas.

O currículo de física dos colégios paulistas já exige o ensino da matéria desde 2008. Mas como o vestibular ainda não cobrava temas que envolviam a física praticada no século 20 e 21, a maioria dos professores continuou focada na física clássica – newtoniana – do século 19.

No entanto, um projeto de pesquisa, liderado por professores da Universidade de São Paulo (USP), vem, há quase uma década, discutindo a melhor forma de se ensinar física de fronteira a alunos do ensino médio. Mais precisamente, três conteúdos: física de partículas, radiações e relativística.

Até agora, são mais de 200 educadores formados, aptos a ensinar física de fronteira a seus alunos

Com o tempo, não apenas se provou que era possível ensiná-los, como um vasto conteúdo didático foi produzido e aulas de formação de novos professores foram ministradas.

O resultado: até agora, são mais de 200 educadores formados, aptos a ensinar física de fronteira a seus alunos. O conteúdo das aulas também está na rede e pode serbaixado gratuitamente na página do projeto, que começa, aos poucos, a ganhar um quarto elemento didático: o material para aulas sobre a dualidade onda-partícula.

E se agora as universidades começam a cobrar esses conteúdos no vestibular, a ‘culpa’ pode ser atribuída a esses professores, espécie de bandeirantes do ensino de física moderna nas escolas. Sim, porque o Núcleo de Pesquisas em Inovações Curriculares da USP é liderado por Maurício Pietrocola – não por acaso, o mesmo físico convidado, em 2007, para reformular o conteúdo da disciplina nas escolas paulistas.

CH On-line conversou, por telefone, com o educador, que contou a trajetória do projeto – da ideia à realização – e revelou especial felicidade por conseguir mudar um paradigma do vestibular: “Em geral, é o professor que precisa se adaptar ao conteúdo das provas; dessa vez, nós, professores, conseguimos fazer com que as universidades se adaptassem às mudanças impostas pelo nosso programa”.

CH On-line: Como surgiu o projeto?
Maurício Pietrocola: Em 2002, o Núcleo de Pesquisas em Inovações Curriculares foi fundado e, em 2003, montamos a proposta de investigar o ensino de física moderna para alunos do ensino médio. Usamos duas dissertações de mestrado como base, que falavam da dualidade das partículas e de partículas elementares. Esses alunos, que eram meus orientandos, me ajudaram a montar o projeto, e logo chegaram outros alunos interessados em desenvolver seus trabalhos com essa temática. Sempre trabalhando coletivamente, propondo métodos e aplicando em turmas do ensino médio, vendo o que dava certo ou errado.

E quando o projeto saiu do núcleo de pesquisa e ganhou o mundo?
No início, as aulas eram ministradas nas turmas de escola pública dos professores envolvidos com o projeto. Éramos seis. Desenvolvíamos a sequência de atividades e a discutíamos semanalmente. Entre 2007 e 2008, tive o convite da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para ajudar a reformular o currículo de física no ensino médio. Fui convidado porque sabiam do nosso projeto na USP. Atualmente, o currículo das escolas públicas de São Paulo exige, no segundo semestre do terceiro ano, ensino de física moderna.

E aí o curso de formação de professores começou? 
Sim, foi nessa ocasião. Começamos os primeiros cursos multiplicadores em 2008. Hoje já somos 200, né? Este ano, terminamos o curso em janeiro, e agora estamos compilando o material e desenvolvendo mais sequências didáticas. O plano é falar agora de cosmologia e fazer uma nova versão para a questão do paradoxo dos gêmeos. Vamos, claro, colocar tudo no nosso site.

“Existiam barreiras didáticas, e existem até hoje, para se ensinar física do século 19 também!”

Existe mesmo uma barreira didática para se ensinar física moderna? 
Existiam barreiras didáticas, e existem até hoje, para se ensinar física do século 19 também! Nós é que não pensamos nisso. A física clássica ensinada na escola não é a física que os cientistas usam, ela é adaptada ao meio ambiente, é ‘didatizada’.

É claro que hoje temos barreiras para ensinar mecânica quântica, relatividade, claro que sim. Mas temos de estudar e ver se essa barreira é instransponível ou se é possível ‘didatizar’ esses conceitos, assim como fizemos com a mecânica clássica.

Discute-se essa mudança curricular no Brasil há um tempo...
É verdade. A mudança no currículo de física no Brasil é discutida desde a década de 1980. Ninguém é contra o ensino de física moderna. A pergunta é: “Como eu ensino?”. E só obtemos essa resposta indo para a sala de aula, saindo da universidade, testando, errando, aprendendo. O mundo acadêmico não gosta muito disso, não gosta de sair da universidade e da teoria, mas precisamos fazer isso.

Os professores chegaram despreparados ao curso?
De modo geral, os alunos estudavam física moderna na universidade sabendo que não precisariam dar muito foco à questão caso quisessem ser professores de escola. E é aquilo: antes de ser professor, o professor já tinha sido aluno do ensino médio. Ele sabia que aquela questão não era cobrada em sala de aula e no vestibular. Então encarava as aulas de física moderna na universidade como um verniz cultural, algo que se soubesse mais ou menos já seria o suficiente. A maioria dos professores chegou apenas com esse ‘verniz cultural’ ao nosso curso.

“Mais valioso do que passar o conteúdo foi quebrar certo mito de que não dá para se ensinar física moderna”

E o resultado final lhe agradou?
Sim! Porque mais valioso do que passar o conteúdo foi quebrar certo mito de que não dá para se ensinar física moderna. Os professores que ministraram o curso já tinham usado o nosso método em sala de aula, e tinha dado certo. Então era hora de um professor olhar no olho do outro e dizer: “O meu aluno não é melhor que o seu, eu não sou melhor que você, se deu para mim, dará também para você”. Isso foi muito legal.

Alguns educadores se perguntam ainda por que ensinar física de fronteira, já que muitos profissionais da própria física não a usam no dia a dia?
Bom, para mim a resposta a esse questionamento é básica. Causa muito estranhamento ensinar aos meninos, em pleno século 21, a física do século passado! Algumas pessoas de fato defendem: “A física que a gente traz não é tão antiga, é a física newtoniana que permite lançar satélites”. Mas e as TVs de plasma, e os celulares mais modernos? Todos eles usam conceitos de física moderna para funcionar. E mais que isso: eu preciso justificar ao meu aluno, até mesmo politicamente, por que gastaram 10 bilhões de dólares num projeto como o LHC.

E vocês se sentem responsáveis pela mudança do vestibular em São Paulo?
Sim, isso é incrível. Porque propusemos primeiro investigar se era possível ensinar física moderna no ensino médio. Vimos que sim e sugerimos a mudança do currículo. Encorajamos as universidades a cobrarem o conteúdo na prova. É uma inversão do que costuma acontecer. A escola influenciar a universidade é raro. 

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line

 

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