Ensina-me a não reprovar

 Maicon Damasceno/O CaxienseMais da metade dos alunos do Emílio Meyer que foram até o fim do último ano letivo estão repetindo a série em 2010

O som estridente e contínuo da campainha anuncia o fim do período da aula e o início do recreio. Quase no mesmo instante, dezenas de jovens descem as escadas correndo em direção à secretaria. Meninas andam em grupo e parecem se divertir com algum assunto particular. Os rapazes aproveitam os 10 minutos de intervalo para conversar e liberar a energia contida nas horas em que estiveram em aula. Os professores tentam fugir desse turbilhão e se abrigam na sala dos professores. Agora, os corredores e o pátio pertencem quase que exclusivamente aos alunos. Do saguão, a imagem do professor Henrique Emílio Meyer, fixada no alto da parede, observa a agitação. O sinal da campainha soa novamente, e em minutos os corredores ficam desertos. É quando a típica alegria juvenil cede lugar à preocupação. Nesse ambiente silencioso circula o fantasma da reprovação, transformando os três anos do ensino médio em um período sem data para acabar.
A Escola Estadual Henrique Emílio Meyer, fundada em 1931, abriga cerca de 1.400 alunos, nos turnos da manhã, tarde e noite. É comandada por uma direção reeleita com mais de 90% dos votos. A vigilância sobre os estudantes é contínua. O horário de entrada e saída é mantido rigidamente. O uniforme é obrigatório, mesmo que muitos deem um jeitinho de não usá-lo. Seria, enfim, uma escola normal, não fosse o altíssimo grau de reprovação no ensino médio. Dos 882 adolescentes matriculados no ano de 2009, apenas 291, 33% do total, conseguiram atingir ou ultrapassar as notas mínimas. O restante da conta é dramático: 386 reprovações (43,7%), 101 abandonos, 96 transferências e oito cancelamentos. Do total de alunos que concluíram o ano, 57% estão tendo que repeti-lo.
A orientadora do turno da tarde e professora de religião Maria Elisa está preocupada com esse quadro, que se agravou no último ano. Para ela, os motivos do alto índice de repetência no ensino médio são muitos. O principal é a falta de apoio da família. “No ensino fundamental, os pais estão mais presentes, vêm às reuniões, estão inteirados sobre a vida escolar dos filhos, e assim o índice de reprovações é bem baixo”, compara a professora. A ligação dos responsáveis com a escola se altera – ou desaparece – nos três anos em que os estudantes passam da adolescência à juventude. “Esses alunos têm problemas que os pais nem imaginam. Eles chegam muito carentes devido ao distanciamento da sua relação familiar. Já houve casos em que ameacei chamar os pais e o aluno respondeu ‘que bom, eles vão olhar para mim.’”
Na sala de orientação, sentada em frente a uma escrivaninha repleta de documentos, Maria Elisa continua tentando encontrar razões para o assombroso percentual de reprovação. Ela relata que muitas meninas abandonam os estudos porque engravidam e alguns rapazes optam por fazer o supletivo, pois já completaram 18 anos. Entretanto, o desinteresse geral dos alunos é a causa mais apontada para as repetências. “Se fores perguntar para alguns estudantes por que eles vêm à aula, te dirão que são obrigados pelos pais, porque fazem o Senai ou têm contrato de estágio e precisam estar estudando”, explica Maria Elisa.
A coordenadora da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), Marta Fattori, diz que a situação do Emílio é atípica em Caxias. “As nossas orientações são iguais para todas as instituições. Escolas do mesmo porte do Emílio, como Cristóvão de Mendoza, Imigrante, Irmão José Otão, Maria Aracy Trindade Rojas, Melvin Jones, Santa Catarina e Escola Técnica apresentam índice de reprovação abaixo de 30%”, revela. Marta entende que o corpo docente e a direção do Emílio devem investigar as causas do problema. “Será que o projeto pedagógico está tendo resultados positivos? Muitos alunos do ensino médio podem chegar na escola sem os subsídios necessários para acompanhar o conteúdo. A escola tem de se adaptar e proporcionar um ensino especial para esses alunos que têm um ritmo mais lento”, sugere.

Ao ouvir o sinal para o primeiro período após o intervalo, o professor de História e Geografia e coordenador do Conselho Escolar João Lucena se dirige à sala de aula do 2º ano. Os alunos, que deveriam estar alinhados em filas, agrupam-se formando pequenas ilhas. Trinta classes estão dispostas aleatoriamente. Após a chamada, o professor cobra os exercícios de tema. “Rodrigo, responda para os teus colegas a primeira questão”, pede o professor. No fundo da sala, se mostrando um pouco embaraçado, o aluno balança a cabeça negativamente. “Professor, fiz todas as outras questões, menos a 1. A partir da 2, podes pedir qualquer uma”, responde. Dos quase 30 adolescentes na sala, 15 levantaram o dedo quando o professor perguntou quem tinha feito o exercício.
O burburinho contínuo de conversas paralelas prossegue por toda a aula. Uma divisão bem tênue separa a maioria das meninas, que preferem sentar na frente, dos rapazes que ocupam o fundo. “Nessa turma tenho vários repetentes. Para eles, a escola é um espaço de convivência. Eles não têm com quem conversar. Os pais não têm mais tempo para falar com eles. Ainda assim, estes alunos estão mais educados. Antigamente eles costumavam afrontar os professores, fato que não acontece mais”, avalia João.
As colegas Bruna Natálie Renosto e Leila Regina Trombetta, do 3º ano, nunca rodaram. Ambas cursaram o ensino fundamental na Escola Estadual Abramo Eberle. Ao ingressar no Emílio, o choque foi imediato. “O primeiro ano foi muito difícil. Também estranhei esse monte de regras. Usar uniforme, horário para sair, horário para entrar”, lembra Bruna, que planeja cursar Gastronomia na universidade. As amigas contam que acompanhar o ritmo exigido pelos professores foi uma tarefa complicada. “No ano passado, peguei provão em Português”, diz Leila. Bruna fez o exame em Português e Química. Parte de uma minoria, elas não se impressionam ao dizer que, dos 30 alunos da turma 203 no ano passado, apenas nove alcançaram a nota mínima para avançar de série.
Apesar do êxito de Bruna e Leila, a vice-diretora da manhã, Cristiane Silva, afirma que a migração de alunos de outras escolas é um fator importante nas reprovações no ensino médio. “Os alunos que rodam são, na maioria, oriundos de outras escolas, principalmente municipais, que não qualificam os seus estudantes ao nível exigido no Emílio. Neste ano, temos como meta diminuir as repetências, adequando o conteúdo aos novos estudantes”, anuncia a vice. Ela conta que foi montada uma turma de 1° ano em 2009 só com estudantes da 8ª série do Emílio e o índice de reprovação foi bem menor.
Conforme Cristiane, as matérias que mais reprovam são matemática e química. Há 30 anos ensinando a tabela periódica, Vera Lúcia Venzan Varela acredita que pelo fato de ser uma disciplina exata os alunos têm mais dificuldades e ressalta que, por ter tido uma graduação muito exigente, acaba cobrando bastante dos estudantes. “Na verdade, quando precisam e se empenham, eles conseguem alcançar as notas. O problema é que muitos não querem mais estudar.” Contradizendo as informações da 4ª CRE, a professora diz que muitas instituições estaduais estão passando pela mesma situação que o Emílio. “Temos reuniões entre os professores de várias escolas, e o problema da reprovação é comum a todas. A educação fugiu da família e ficou centrada só na escola”, conclui.
A professora de Matemática Ileane Cristina Scapin tem menos tempo de profissão, mas não é menos exigente com seus alunos. Ao longo dos três anos em que está no corpo docente da escola, ensinou centenas de adolescentes a realizar os mais diversos tipos de cálculos. “Muitos alunos têm dificuldades em matemática. Eu dou diversas oportunidades de se recuperarem, mas eles não querem. Acreditam que relacionando-se bem com os professores nós vamos passá-los”, relata a professora, que costuma dizer aos estudantes que conhecimento é a única coisa que não se pode retirar do indivíduo.

Os estudantes da turma 102 se preparam para mais uma aula de Religião com a professora e regente Maria Elisa. Dos quase 30 alunos é possível contar nos dedos de uma só mão o número dos que nunca reprovaram. Por estarem em maioria na sala e na escola, os demais criaram um sentimento de grupo que permite não se sentirem excluídos ao falar abertamente da situação de repetência. Daiane é a primeira a expor o seu caso. Reprovou pela primeira vez e está repetindo o 1° ano. “Nos deparamos com dificuldades, dúvidas que ficaram para trás. Sempre fui assim, deixo as coisas para mais tarde. O conteúdo é muito amplo. Mesmo repetindo de ano a gente esquece o que foi passado”, explica. Em 2009, ela sentava no fundo da sala. Agora fica em lugar mais próximo da professora. A reprovação fez com que Daiane se empenhasse mais nos estudos. “Meu pai sabe que reprovei, mas não tive coragem de contar. Ele soube pela minha mãe”, completa.
Outro problema comum levantado pelos alunos é a situação da família. “Muitas pessoas querem estudar mas têm problemas em casa, e isso atrapalha bastante”, revela Henrique. Ele conta que rodou na 7ª série quando seus pais se separaram. A segunda reprovação se deu no 1° ano, quando entrou no Emílio. “Quando ingressei na escola eu não conhecia ninguém e tinha vergonha de perguntar.” A lista de justificativas continua. O grau de exigência da escola, dizem eles, eleva o número de reprovações. Jenifer diz que esse foi o seu caso. A aluna fez o ensino fundamental em uma escola municipal e não conseguiu se adaptar à mudança. “O colégio em que estudava não tinha um bom ensino. Quando rodei, meus pais ficaram muito decepcionados, com sentimento de culpa”, revela a aluna, reprovada em quatro matérias.
Há, ainda, a questão do trabalho. Muitos estudantes se dividem entre as aulas e um emprego. “Trabalho no caixa de um mercado. É muito cansativo conciliar as duas atividades”, conta Joice. O mais velho da turma é Rafael. Tem 18 anos e repete pela terceira vez o 1° ano. A ideia de trocar o colégio por um supletivo para tentar compensar o atraso escolar é inevitável. “Pretendo terminar este ano no Emílio e depois fazer o Neja (Núcleo de Educação de Jovens e Adultos).”
Enquanto os alunos se conformam, tentam estudar mais ou fazem planos de mudar para um supletivo, a escola toma algumas medidas para diminuir as reprovações. A orientadora Maria Elisa diz que o colégio não conta com professores substitutos. “Fizemos um acordo, quem estiver de folga ocupa a vaga de um professor que tiver de se ausentar. Não vamos mais dispensar alunos.” No ano passado, o colégio experimentou dar um ensino diferenciado aos repetentes. A turma 104 reuniu apenas alunos que já haviam reprovado e trabalhou com a valorização do indivíduo. Apesar disso, a maioria rodou novamente. “Fiquei muito desapontada. Ainda buscamos meios de cativar os estudantes”, diz Maria Elisa.
A aproximação da família é uma das metas do Conselho Escolar para combater a repetência e a evasão. O coordenador João Lucena ressalta que se os pais estiverem presentes o desempenho do aluno será muito melhor. “Sábado (dia 27) teremos reunião com os pais das 11 turmas de 1° ano, que somam por volta de 400 alunos. Se vierem 100 deles, o encontro pode ser considerado um sucesso. Esse número é baixo porque, em alguns casos, o aluno reprovado assina o chamado pelo pai e ele nem fica sabendo. Alguns dos que recebem a solicitação não querem ir, pois sabem os filhos que têm. Para eles, o trabalho vem em primeiro lugar.”

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Publicado originalmente em O Caxiense

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E para você, quais as principais causas das reprovações?