Uma conversa amistosa com Ariano Suassuna

Entre uma série de reportagens veiculadas por esses dias, em função da morte de Ariano Suassuna, gostaríamos de compartilhar com nossos leitores uma entrevista concedida pelo escritor à revista eletrônica Carta Escola, para a jornalista Livia Perozim, em 2007. Gostamos desta matéria por ter sido abordadas muitas questões próprias do universo escolar, que entendemos possa interessar mais ao nosso público leitor em geral. Então vamos à entrevista.

Perguntado acerca de qual obra sua Ariano indicaria para os jovens, o autor primeiro opinou de que é preferível que o adolescente leia um livro de menor valor literário, mas que o leia com paixão. É melhor assim do que ler A Divina Comédia, por mera obrigação. Neste sentido, proferiu o escritor, “para uma pessoa pouco habituada à leitura eu indicaria O Auto da Compadecida. Já para um jovem com interesses literários, eu recomendaria A Pedra do Reino.”

Acerca da dificuldade de ser escritor no Brasil, Ariano observa que este problema de desinteresse pela leitura não atinge só o país, mas que ela, a leitura, “não é comum em país nenhum.” Observa o escritor: “Não acredito que o italiano médio leia A Divina Comédia. O público leitor italiano, sim. Agora, no Brasil de mais 180 milhões de pessoas, as nossas edições são de 2 mil, 3 mil exemplares.”
Ou seja, esta constatação de Ariano sobre a dificuldade das pessoas, jovens ou não, de se atraírem para a leitura, de que não ocorre somente no Brasil, talvez sirva de consolo para os professores, sobretudo de português, quando se frustram ao tentarem fazer seus alunos lerem. Por outro lado, cabe a dica de Ariano de não querer quebrar essa resistência do aluno, fazendo-o ler logo de início, uma Divina Comédia.  Salvo para os alunos que anseiam por uma literatura mais densa, como aponta o escritor.

Curiosa também foi a resposta de Ariano acerca de Canudos. O autor consegue ver uma analogia entre o povo de Canudos e os moradores de uma favela atual. Observa o escritor que “a mesma dilaceração que havia em Canudos há na cidade, entre nós e a favela. Veja bem, eu não idealizo o povo brasileiro. Em Canudos havia ladrões de cavalo, assassinos, do jeito que hoje na favela tem traficante, bandido.” Ariano constata que ambos os povos em sua maioria são trabalhadores, e que quando vê a polícia cercando as favelas, é o mesmo quando cercavam o povo de Canudos. Conclui o autor que “com essa reflexão comecei a descobrir que o povo do Brasil real eram os despossuídos, na cidade ou no campo.”  

A jornalista lembra Ariano que ele havia sido convidado para ser vice de Lula, em 1989. E pergunta a ele o que teria feito pela educação. Bem humorado, Ariano expressa: “Eu jamais faria essa loucura, está certo?”
Mas em seguida, o poeta resolve contar uma história muito tocante que viveu em sua infância, acerca do ambiente escolar, que, como diria Paulo Freire, demonstra a necessidade da escola proporcionar relações mais humanizadas, antes de tudo. Pois, somente assim perceberemos, entre outras questões, que resolver o problema da fome vem primeiro que o da educação. Vejamos a história de Ariano, que vale a pena lermos na íntegra:
"Eu tinha três colegas de turma que eram irmãos. Osório, o mais velho, Pedro, o segundo, e Davi. E esses meninos eram perseguidos. Primeiro porque eles não se misturavam, depois porque eram péssimos alunos. Graças a Deus, sempre tive um certo senso de justiça. Um dia, por um impulso qualquer, ofereci ao Osório metade do pão que eu comia. Ele aceitou e dividiu com os dois irmãos. Continuei dando um pedaço do meu lanche para eles. Anos depois, encontrei o Pedro e ele me disse que aquele era o único café da manhã que eles tomavam. Eles moravam na zona rural, vinham a pé para a escola sem comer nada. Eu não tenho competência nenhuma para ser nem presidente, nem ministro, mas tenho a convicção absoluta de que o problema fundamental, antes do educacional, é o da fome."
Vendo este relato de Ariano fica evidente a necessidade de programas como o Bolsa Família, independente dos problemas de gestão que ele possa ter. É fácil criticar o programa e ignorar a realidade cruel desta população que passa fome. Difícil é reconhecer a “questão de honra” que é para uma sociedade não permitir que essa realidade de pobreza extrema se perpetue.

Perguntado se o Brasil passa por um momento de crise, Ariano entendi que sim, mas afirma que já foi pior. Cita as teorias racistas do século XIX, que pregavam a inferioridade dos mestiços e dos negros, o que acarretava, por sua vez, um brasileiro com muita baixa autoestima. “E hoje noto um interesse maior pela literatura brasileira e pelo povo.”

Esta percepção de Ariano é muito procedente, da melhora de como o povo brasileiro se vê. Se antes o "desprezo do povo brasileiro por si próprio era uma coisa terrível”, atualmente, por outro lado, ao menos no que diz respeito aos conteúdos escolares, o que podemos observar é que até mesmo a aprovação da lei 11.645, que estabelece obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no Ensino Fundamental e Médio, confirma esta tendência do país buscar valorizar suas origens, sua matriz cultural.

Na passagem seguinte queremos mostrar para vocês o quanto a rebeldia juvenil deve ser bem vinda, assim como o seu protagonismo também é necessário. Neste trecho, Ariano nos conta da sua rebeldia e lucidez nos seus 19 anos de idade, ao questionar o status quo da época para poder inaugurar o que ele passou a chamar de aula-espetáculo. Vejamos a história inteira contada pelo poeta:

"Eu tinha 19 anos quando dei a primeira aula-espetáculo no Teatro Santa Isabel, apresentando três cantadores e um poeta popular. Foi um escândalo na época. O diretor do teatro não se conformava. Ele disse: “Você quer colocar cantador de viola no palco onde Tobias Barreto e Castro Alves recitavam poemas?” Ao que eu respondi: “Doutor, gostaria de ouvir a opinião de Tobias Barreto e Castro Alves, que eu tenho certeza que eles iam gostar”. Eu estava certo. Repare, essa cantoria que organizei aos 19 anos resultou no primeiro congresso de cantadores do Recife. E o sucesso foi tão grande que alguns viajaram para o Rio e cantaram na Academia Brasileira de Letras."

Ainda acerca destas aulas, quando Ariano completa: “Comecei a notar que falando das coisas que amava, eu tinha certa empatia com o público. Quando me tornei professor, comecei a usar isso nas aulas.” Aqui o poeta nos dá uma lição acerca do magistério, de que todo professor deveria buscar tratar em suas aulas assuntos ou ilustrações que ele fosse apaixonado. Provavelmente as aulas se tornariam muito mais fascinantes para quem as assiste.

Por fim, não poderíamos deixar de selecionar desta conversa com Ariano, o seu lado inteligente de fazer piada. Este seu lado veio à tona quando a jornalista perguntou para ele se o incomodava as críticas, quando ele fora chamado de conservador, retrógrado, em tempos atrás. Vejamos o que respondeu o menestrel:

"Eu sou um sujeito bem-humorado e faço disso um motivo de brincadeira. Uma vez um camarada me chamou de arcaico porque eu defendia a cultura brasileira em geral e a cultura popular em especial. Ele escreveu a seguinte frase: 'Dos nordestinos nefastos ao Brasil já morreram Antonio Conselheiro, Padre Cícero e Lampião. Só falta agora Ariano Suassuna'. Pois bem, aí eu comecei a usar isso nas minhas aulas. Eu dizia, “Olhe, um sujeito desses, além de errado, é um incompetente. Está querendo me insultar e me faz um elogio?” Nunca pensei que eu tivesse uma dimensão tão grande, me comparar com Antonio Conselheiro, Padre Cícero, Lampião. Um profeta, um santo e um guerreiro? Comecei a me achar depois disso (risos)."

Que prazeroso ouvir isto de Ariano! Que saudades...! Já nos imaginando e nos sentindo na pele da jornalista Livia, no momento da entrevista.

Concluímos este post, nossa singela homenagem ao Ariano, com esta sua máxima que pode se eleger como uma síntese da sua vida.

"Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver."

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