PORQUE EU NÃO ESTOU NEM AÍ PARA O DISCURSO FEMINISTA DE EMMA WATSON NA ONU

Este texto é uma tradução do post Why I’m not really here for Emma Watson’s feminist speech at the U.N., escrito pela blogueira negra estadunidense Mia McKenzie, do famoso blog Black Girl Dangerous. Logo que terminei de lê-lo me senti na obrigação de traduzi-lo para possibilitar que outras meninas da interweb feminista negra brasileira pudessem entrar em contato com essa discussão. Tem se tornado recorrente em vários círculos, sejam eles virtuais ou não, sermos constantemente deslegitimadas e até mesmo atacadas pelo feminismo branco hegemônico por conta de nossas leituras que levam em consideração a questão racial. Também é comum nos depararmos com análises grotescas de artistas negras escritas por feministas brancas que teimam em ignorar seus privilégios de raça, nos colocando no enorme caldeirão radfem do “somos todas mulheres”. Esse texto apresenta a crítica de raça e gênero escrito por uma menina negra a respeito de uma artista branca que recentemente se reivindicou feminista. Que tomemos mais essa tarefa. 

Veja a fala dela aqui: http://youtu.be/Hyg_QIYKv_g

A atriz Emma Watson, famosa pelo filme Harry Potter, é a nova embaixadora da boa vontade da ONU Mulher. Ela discursou na ONU neste sábado para lançar a campanha “Ele para Ela”, cujo propósito é mobilizar homens para acabar com a desigualdade de gênero. A campanha quer que os homens façam da igualdade de gênero um assunto seu também, e Watson estendeu o convite formal para que os homens o façam.

Algumas da interweb feministas mainstream (branca) ficaram mega empolgadas e consideraram aquilo maravilhoso em todos os sentidos e muito, muito, muito avançado ou sei lá o quê. Sim, algo do discurso foi muito produtivo. Emma Watson falou sobre sua introdução ao feminismo após experiências como a de ser sexualizada pela mídia aos 14 anos de idade. Nos primeiros minutos, o discurso foi maravilhoso.

Daí que após 6 minutos o discurso fica pouco bom.

Eu me considero uma fã de Emma Watson. Gosto dela. Sempre curti. Sou fã de Harry Potter antes do rolê de igualdade de gênero. E gostei dela em outras coisas também. Eu ainda gosto dela. E também sei que ela manda bem no feminismo e suas intenções na ONU são boas. Legal. Excelente. Mas nada disso tem a ver com o assunto abordado aqui.

A questão é que a mensagem que Watson passou é problemática em vários aspectos.

Em seu discurso para a ONU, Emma Watson diz:

"Como podemos promover mudança no mundo se apenas a metade dele é convidada ou é acolhida para participar da conversa? Homens – eu gostaria de aproveitar a oportunidade e estender seu convite formal. Igualdade de gênero também é assunto seu."

Aqui ela aparenta sugerir que a razão que faz com que homens não se envolvam na luta por igualdade de gênero é, simplesmente, o fato das mulheres não os terem convidado ou, até mesmo, não os terem acolhido. As mulheres não fizeram um convite formal, por isso que eles não participam. Não é porque o homem tem enormes benefícios (sociais, econômicos, políticos, etc) com a desigualdade de gênero e por isso recebe pouco incentivo para apoiar o seu fim. Não é por conta da hegemonia da misoginia no mundo inteiro. É só porque ninguém convidou os homens. MEU DEUS, por que nenhuma de nós nunca pensou em chamá-los?

Esta é uma sugestão absurda. As mulheres tentam fazer com que os homens tomem a pauta de opressão da mulher para si desde sempre. Os homens nunca estiveram extremamente interessados em lutar nessa batalha, porque isso requer o abandono de poder e todas as evidências sugerem que eles não estão muito a fim disso. Compartilha aquele link sobre igualdade de gênero? Claro! Pode contar comigo! Abandonar “de verdade” seu poder em situações reais? Não, de jeito nenhum!

Watson afirma que:

"Tenho visto que os homens têm se tornado frágeis e inseguros por um critério distorcido daquilo que constitui o sucesso masculino. Homens também não têm o benefício da igualdade.

Não costumamos falar sobre homens que estão presos a estereótipos de gênero, mas sei que eles estão e que quando estiverem livres disso, as coisas mudarão para a mulher como uma consequência natural"

Essa mensagem é falha e infeliz. Afirmar para os homens que eles deveriam se preocupar com a desigualdade de gênero porque isso também os atinge centraliza o homem e seu bem-estar num movimento consolidado por mulheres para a nossa sobrevivência num mundo que nos degrada e nos desumaniza diariamente. É tão problemático quanto afirmar para pessoas brancas que elas devem acabar com o racismo porque essa opressão retém todos nós na sociedade, então erradicá-lo os ajudariam também. É complicado.

Primeiramente porque mesmo se isso fosse verdade, não cria nenhum tipo de solidariedade. Nunca conheci uma pessoa branca que decidiu tomar para si a luta anti-racismo por conta de seus efeitos negativos para pessoas brancas. Literalmente, nunca vi. E acho que não conheci nenhum homem que genuinamente apoiou ideais feministas porque eles beneficiavam, sobretudo, os homens. Se eu conhecesse gente assim, eu os adoraria. Eu questionaria porque comumente a opressão brutal sofrida por pessoas de cor * e mulheres (especialmente mulheres de cor) nunca foi suficientemente interessante para eles,que insistem na epifania sobre a maneira como homens e/ou pessoas brancas são atingidas por essas construções pelo fato de que “homens também podem chorar”.

Em segundo lugar porque isso ignora o quanto homens se beneficiam com a desigualdade de gênero (sim, Emma, eles se beneficiam mesmo!)

Permita-me mostrar algumas estatísticas desse lado da balança:

- 1 em cada 5 mulheres americanas já declararam ter sofrido estupro. 1 em cada 71 homens americanos afirmam o mesmo.

- Mulheres americanas brancas (e cisgêneras) ganham 78% do salário de homens brancos exercendo a mesma função. Mulheres americanas negras (e cisgêneras) recebem 89% do salário de homens negros e 64% daquilo que homens brancos ganham executando o mesmo trabalho. Mulheres latinas (e cisgêneras) recebem 89% do salário de homens latinos e 53% daquilo que homens brancos recebem trabalhando na mesma função.

- Apenas 4,8% dos 500 diretores executivos eleitos pela revista Fortune são mulheres.

Certamente a desigualdade salarial por gênero existe em todos os lugares do mundo, incluindo o Reino Unido. E o estupro também.

Dizer que homens não tiram proveito da desigualdade cria uma falsa narrativa de que todos nós somos atingidos da mesma forma e na mesma escala de danos da desigualdade de gênero. E isso não beneficia ninguém, não é verdade. Emma Watson sendo hipersexualizada pela mídia aos 14 anos não é o mesmo desconforto de seus amigos homens para expressar seus sentimentos. Isto é falsa simetria. A maneira como a desigualdade de gênero é ruim para meninos e homens é bem diferente da maneira como ela funciona para meninas e mulheres. Ou melhor, isso oprime e abusa as mulheres e meninas em qualquer fase da vida.

Em terceiro lugar, pessoas com muito privilégio são constantemente centralizadas dessa forma nos debates sobre opressão – e isso precisa acabar. Isso explica porque o casamento civil igualitário é uma pauta do movimento LGBTQ** mainstream, em vez da juventude queer sem-teto ou da luta de idosos, em vez da invisibilização e apagamento de pessoas de cor que são queer e trans. A face do movimento “pró-casamento igualitário” é majoritariamente branca, masculina e rica. Aqueles que têm mais privilégio são centralizados na discussão, enquanto que as pessoas mais oprimidas são secundarizadas. Descentralizar mulheres nos debates sobre desigualdade de gênero não é bom.

Emma Watson também diz:

"Quero que os homens assumam esse papel. Dessa forma, suas filhas, irmãs e mães podem se libertar do preconceito"

A mensagem subliminar aqui é que as mulheres merecem equidade e igualdade para se relacionar com os homens. Continua reforçando a ideia de que os homens devem respeitar as mulheres e lutar por igualdade de gênero porque a mãe/irmã/filha/qualquer coisa perpetua a ideia de que mulheres não mereçam essas coisas baseado unicamente no nosso status de seres humanos. Isso encoraja o homem a pensar que a mulher está sempre submetida a um relacionamento com eles, como se a nossa pseudo-humanidade fosse secundarizada apenas pelo “humanismo” masculino. A verdade é que mulheres são um todo, pessoas completas, sem precisarem do nosso status na vida dos homens. É isso que eles precisam ouvir cada vez mais. É isso que todo mundo deveria ouvir todos os dias.

Creio que Watson hesitou na ideia de feminilidade, seja ela expressa pelo homem ou pela mulher (ou pessoas queer, mas ninguém liga, elxs não existem no discurso da ONU e nem na campanha “Ele para Ela”) é o que pode, de fato, lançar algum tipo de confronto. Feminilidade é visto como fraqueza e é odiada por isso. É um argumento válido e muito importante, mas ela não fala nada disso, não aparenta ter ainda uma leitura sólida e parece ser esse o limite da plateia que escuta o seu discurso.

Então, a gente pode parar de fazer de Emma Watson o novo ícone feminista do universo? Ela ainda não é. Ainda está aprendendo, creio eu, assim como a Beyoncé que, a propósito, raramente tem o privilégio da dúvida que as feministas brancas têm, aclamadas isoladamente como rainhas feministas de todos os assuntos, quando suas expressões feministas são pouco perfeitas (Imagine se a Beyoncé colasse na ONU e fizesse um discurso centrado na figura masculina na luta pela igualdade de gênero. O céu do feminismo branco mainstream cairia sob forma de um castigo infernal nas nossas cabeças – na verdade, de algumas de nós).

Eu espero que Emma Watson continue crescendo em seu feminismo e corrija essas abordagens problemáticas. Mas, francamente, demoraria muito para enxergar uma transformação efetiva no feminismo que ela reivindica. Onde está sua análise racial e sua necessidade para acabar com a desigualdade de gênero? O que ela sabe a respeito da misoginia sofrida por mulheres negras? Ela compreende que as mulheres brancas e ricas como ela são geralmente opressoras com mulheres de cor e/ou pobres? Qual o seu entendimento sobre transfeminismo? Ela conseguiria explicar para a ONU, ou qualquer outra pessoa, por que a violência contra a mulher trans precisa ser priorizada no nosso trabalho contra a misoginia? Ela conhece e conseguiria articular que o capacitismo não é apenas sobre desigualdade de gênero, mas sobre qualquer forma de opressão que existe? E, mais importante, ela compreende que por ser branca ela tem acesso garantido e é tomada com seriedade pelo feminismo mainstream de uma maneira que mulheres de cor não são, e que por isso é necessário que ela dê um passo a frente e prepare o terreno para que a mulher de cor seja ouvida sobre a erradicação da desigualdade de gênero? Porque qualquer feminismo que pretende mudar o jogo precisa disso.

Particularmente, acho que seria muito legal se a mulher que um dia foi Hermione se voltasse a um feminismo mais combativo. Para mim, é necessário um pontapé de verdade, uma análise e abordagem mais combativa. Emma Watson ainda não chegou lá.

* Pessoas “de cor” é uma expressão cunhada por mulheres estadunidenses (chicanas, afrodescendentes, asiáticas, latinas) que perceberam que sua localização social e étnica marcadamente diferente das mulheres brancas daquele país as inseria em uma nova categoria de mulheres, onde a palavra “cor” estaria mais atrelada a uma referência política do que a diferentes pigmentações de pele  (nota da ~tradutora~)

 

- O que você acha? Concorda com essa blogueira? Estamos longe da igualdede de gênero?