‘O som ao redor’ e a reinvenção do cinema político

Crítico de cinema qualifica O som ao redor como “espetacular”, vendo nele a importância para o cinema brasileiro contemporâneo que tiveram Terra estrangeira, de Daniela Thomas e Walter Salles, para a produção da década de 1990, e Cidade de Deus, para os anos 2000

“Em seu primeiro longa, Mendonça, um ex-crítico de cinema, narra os ritmos da vida diária em um complexo de apartamentos afluente da cidade costeira brasileira de Recife. O que emerge é um retrato sutil de uma sociedade em vias de uma rápida transformação social, ainda assombrada pelas crueldades de seu passado feudal.” Essa seria apenas mais uma das inúmeras críticas bastante animadas com o filme O som ao redor, dirigido por Kleber Mendonça Filho, se não fosse por seu simbolismo. Afinal, vinha acompanhada de uma indicação entre os dez melhores filmes de 2012 feita pelo respeitado crítico estadunidense A.O. Scott nas páginas do The New York Times. Ao lado dos novos trabalhos de Quentin Tarantino, Michael Heneke e Steven Spielberg nessa lista, o filme era o único latino-americano citado.
Filmado em 2010, O som ao redor estreou no circuito comercial em 4 de janeiro de 2013, trazendo consigo uma enorme aceitação em festivais nacionais e internacionais. Desde sua primeira exibição, no Festival de Cinema de Roterdã, no qual já recebeu prêmio da crítica, obteve 14 prêmios, entre eles os principais da Mostra de Cinema de São Paulo e do Festival do Rio. No caminho inverso do habitual, estreou em 13 salas e viu esse número aumentar para até 18, cruzando a marca de 70 mil espectadores, fato notável para uma produção de R$ 1,8 milhão de orçamento e anos-luz distante da estrutura de um blockbuster sobre vampiros como Amanhecer– parte 2, lançado em 1.228 cinemas pelo Brasil.
“O som ao redor é um dos melhores filmes brasileiros de sempre. É um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo”, exaltou Caetano Veloso em sua coluna no jornal O Globo. “Com o novo cinema pernambucano, a luta de classes volta ao cinema brasileiro”, sentenciou o crítico e professor Jean-Claude Bernardet na revista Teorema, numa análise que transparece um dos efeitos do sucesso da obra de Kleber Mendonça Filho: lançar luz sobre o restante da produção cinematográfica de diretores pernambucanos que têm em comum não só o fato de serem praticamente novatos, mas também a disposição de utilizar as telas para refletir seriamente sobre o Brasil contemporâneo.
Formado em jornalismo e por muitos anos crítico de cinema em jornais e na internet, tendo inclusive realizado o documentário Crítico, discutindo exatamente este ofício, Kleber Mendonça tem 44 anos e produziu seu primeiro curta em 1997, chegando só 15 anos depois ao lançamento de seu primeiro longa ficcional. Cinéfilo declarado, o cineasta vê agora seu filme revelar para um maior público colegas pernambucanos seus, que já causam burburinho em festivais especializados há alguns anos, como Gabriel Mascaro, de 29 anos, e Marcelo Pedroso, de 33.

Cena do filme O som ao redor (Reprodução / Filme)
Para o crítico e estudioso do cinema pernambucano Heitor Augusto, filmes de grande potencial como Doméstica, de Mascaro, e Pacific, de Pedroso, deixam de chegar ao público que não é do “gueto” dos especialistas em cinema não por sua qualidade, “mas pelo sistema de distribuição esquizofrênico existente” hoje no País. Apesar de não haver um “movimento” propriamente dito, essa geração tem questões bastante próximas: “São filmes bem preocupados com o que é o cinema, não são filmes que se importam apenas com a mensagem, eles têm no horizonte uma vontade de ser algo a mais. Quase como o encontro de duas ideias marcantes no cinema brasileiro: enfrentar a realidade, como propunha o Cinema Novo, junto com a proposta de reconstruir o cinema, propor outras linguagens, uma certa ironia, como propunha o Cinema Marginal. Não que esses filmes fiquem citando Gláuber e Sganzerla, mas eu vejo nesse grupo de filmes uma vontade que me parece vir tanto daqui quanto dali”, analisa Heitor, ressaltando sua relutância em soar “herético”.
Documentos de uma época em que ainda era possível fazer alguma coisa

“Para mim, a questão não é a presença ou a ausência de política na obra de arte. O que me interessa muito é a potência política que emana a partir dela como experiência e processo”, afirmou Gabriel Mascaro em entrevista concedida à revista Fórum, de Paris, onde participa há alguns meses de uma residência artística em uma universidade francesa. Em seu mais recente filme, o documentário Doméstica, Mascaro entregou câmeras de vídeo para sete adolescentes, que filmaram o cotidiano de suas empregadas domésticas por uma semana antes de entregar o material bruto para o diretor, que a partir daí brinda o espectador com um poderoso e bem engendrado retrato das relações de poder, cordialidade e desigualdade vividas no cotidiano de famílias de classe média