Pequena ‘resenha’ de“De verdade” de Sándor Márai

Vou publicar aqui uma pequena “resenha” de um romance que li há pouco tempo, chama-se “De verdade”, de autoria do austro-húngaro  Sándor Márai. Escrevo “resenha” com aspas, pois não pretendo realizar um texto naquilo que é esperado do gênero. Em verdade, gostaria de compartilhar um trecho do livro, aproveito para apresentá-lo aos colegas que ainda não o conhecem.

O romance é constituído pela fala de quatro narradores diferentes: de Ilonka, Pétér, Judit e um músico namorado de Judit. Cada um descreve suas vidas entrelaçadas através do próprio olhar. As organizações discursivas diferentes sobre os fatos que se passaram com mais de um narrador mostram a pluralidade de percepção que o homem tem do mundo e as dificuldades de convivência em uma sociedade bastante injusta.

As narrativas de Ilonka e Pétér foram escritas por Sándor na década de 1940. Essas duas personagens foram casadas e são de famílias burguesas. Ilonka de um círculo pequeno burguês, mas muito bem criada. Pétér de família da alta burguesia, com tradição industrial há algumas gerações. Ilonka sentada em uma confeitaria e Pétér em um café, ambos narram a um interlocutor a vida de casados e a separação motivada por um amor não resolvido de Pétér por Judit, então empregada de sua casa na juventude. O amor por Judit foi durante algum tempo a forma de escape de Pétér para superar a reificação da condição burguesa, mas ao fim torna-se também sua ruína. 

Escritos mais de três décadas depois, as narrativas de Judit e de seu namorado músico complementam a obra e lançam olhar mais crítico em relação à sociedade burguesa da Europa pós-guerras.  

Há inúmeras reflexões sobre o papel da literatura e da arte durante todo o romance, seja pela fala dos burgueses como das pessoas do povo. Gostaria de transcrever uma que me causou grande impressão na reflexão sobre “literatura para quê?”. É Pétér, o burguês reificado pela própria condição de proprietário, quem diz:

“Eu lia muito. Mas também com a leitura somos, você sabe... você só ganha dos livros alguma coisa se for capaz de dar alguma coisa às suas leituras. Quero dizer, se se empenhar a ponto de no duelo da leitura receber e infligir ferimentos, se se dispuser a discutir, convencer, e se convencer, e depois, enriquecido pelo que aprendeu no livro, na vida, ou no trabalho, você puder construir com base nisso alguma coisa... Um dia notei que não tinha mais uma relação verdadeira com as minhas leituras. Lia como lemos uma cidade desconhecida, para passar o tempo,  como vamos a um museu onde olhamos para os objetos expostos com uma indiferença educada. Lia como quem cumpria uma obrigação: saía um livro novo, falavam dele, eu tinha de lê-lo. Ou ainda não havia lido o livro antigo, famoso, minha cultura era imperfeita, toda manhã e toda noite eu lhe dedica uma hora e o lia. Eu lia assim... Houve um tempo em que a leitura era para mim uma aventura, eu pegava nas mãos com o coração batendo forte os livro novos dos escritores conhecidos, o livro novo era como o encontro com alguém, uma convivência perigosa de que adviria toda espécie de coisas felizes, boas, mas também consequências perturbadoras, angustiantes. Agora eu lia como ia à fábrica, como ia duas vezes por semana, ou mais, aos encontros sociais, como ia ao teatro e como vivia em casa com minha mulher, atencioso e educado, no coração com a questão opressiva, preocupante, a qual gritava rouca que havia um grande problema comigo, um grande perigo me ameaçava, talvez eu estivesse doente, talvez uma armadilha ou uma trama estivesse sendo armada contra mim e eu não tivesse certeza de nada, um dia acordaria ante a realidade de que tudo o que eu construíra, a obra-prima da ordem cuidadosa, do respeito e dos bons modos e da convivência educada ruiria...”
(Marái, Sandor. De verdade. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2008. P. 207-208)

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Comments

imagem de Nilma Gonçalves Lacerda

"De verdade", assim se deve ler literatura

Felipe,

ótimo o texto que vc destaca. Vou usá-lo em minhas aulas de Uma arte de fazer: a formação do leitor e da leitora.  De verdade: assim se deve ler literatura. Senão, a gente faz aquela antipoética do Manuel Bandeira. Ler nos tira da automação, põe quistos na alma. Põe, não. Faz ver os quistos que estão lá, mostra que podem ser drenados, ou não. Pode mostrar que são os quistos que nos salvam.

Pra vc, pra todos, pra todas,  um ramo das leituras de janeiro,

Nilma

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imagem de Felipe Gonçalves Figueira

obrigado pelo comentário

Olá Nilma!

 

Obrigado pelo comentário e o incentivo de sempre!

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